por Jacqueline Muniz*
A polícia é uma organização profissional de controle social. O estado de sua arte é o emprego de coerção autorizada sob o império da lei diante do consentimento da sociedade policiada em todas as suas atividades sejam elas preventivas, dissuasórias ou repressivas. A polícia distingue-se de um bando armado ou de um grupo voluntarista que empregam a violência indiscriminada e amadora porque ela usa de força potencial e concreta, legal e legítima, com superioridade de método.
Isto quer dizer que a polícia, uma burocracia estatal profissional, tem que ter padrão tático nas suas formas de imobilização defensiva de oponentes, do comando verbal até a execução do tiro pontual ou de área. Afinal, o uso coercitivo da força para produção de obediências consentidas frente às regras legais do jogo está no centro de seu mandato público e corresponde à sua razão de ser e existir em sociedades democráticas.
Por isso, balas perdidas ou achadas são, segundo a doutrina profissional de polícia, uma aberração político-institucional em qualquer cenário de atuação tanto na ação individual quanto na guarnição e no corpo tático. Sob pena de se tornar apenas polícia de jure e não mais uma polícia de fato aos olhos da sociedade que detém o poder de polícia delegado, a polícia não tem como pagar o alto preço da suspeição quanto aos fins, meios e modos de sua ação, sem perder a sua própria capacidade coercitiva. Pois quanto mais se suspeita da polícia menos ela se mostra capaz de sustentar os efeitos dissuasórios e preventivos de sua repressão qualificada para além do momento de sua atuação. Com este círculo vicioso a polícia acaba por produzir escassez de seus recursos repressivos, exaurindo sua pronta-resposta diante da emergência, comprometendo a possibilidade de reversão de eventos críticos e de alto risco e, não menos importante, a oportunidade de controle de território e população, tornando-se a polícia do enxuga gelo, em total desvantagem tática até diante da resistência de cidadãos desarmados e que só chega depois que tudo mais já aconteceu. Torna-se esporte popular resistir à presença, expectativa de presença e as formas concretas de ação policial.
As consequências da desconfiança pública de que a bala perdida ou achada veio da polícia que, por obrigação de ofício, tem que ter alvos definidos, alternativas de tiros defensivos e de controle de perímetro, são tão graves que levam à perda gradativa de sua reputação e de sua autoridade nas esquinas do asfalto e nas vielas da favela. Fazem da polícia desacreditada e desmoralizada uma força estrangeira em seu território de atuação e, por conseguinte, experimentar a redução continuada de sua eficácia, eficiência e efetividade. Em uma frase, basta a dúvida da autoria do tiro, cristalizada na memoria popular diante da vivência de casos passados, para a polícia se ver afogada em demandas que não tem mais pernas para atender, nadando contracorrente de sua missão constitucional para ver morrer o seu mandato público ao chegar na praia.
Balas perdidas ou achadas atribuídas a polícia são, portanto, um grave problema político, estratégico e tático-operacional que, antes de refletir a reação armada de criminosos e oponentes, expressam uma escolha governamental por uma política de operações, fadada ao fracasso logístico e tático operacional posto que torna a polícia refém e dependente do enfrentamento criminoso que se pretende combater. Quanto mais operações se faz para tudo e qualquer coisa, menos recursos repressivos se terão mais adiante para estender no tempo os resultados produzidos na última operação e fazer outras operações oportunas e apropriadas. E neste circuito perverso, mais operações pontuais e banalizadas serão vistas como necessárias para produzir o resultado anterior desperdiçado. Só que agora com um custo ainda mais elevado por conta da escassez dos meios policiais e da ampliação dos riscos de vitimização e letalidade policiais que irão produzir novos casos de balas perdidas ou achadas.
A recorrência dos casos de balas perdidas ou achadas no Rio de Janeiro explicitam a ingovernabilidade da segurança pública e das polícias, na qual a missão dada, os meios logísticos da ação (armamentos, munição etc.) e os modos táticos do agir (formas de atuação) brigam entre si produzindo mais erros, incapacidades e incompetências na tomada de decisão policial. Maximizam-se as incertezas e os perigos reais que deveriam ser administrados pela ação policial.
Para além da dúvida social, a bala achada ou perdida quando vinda da polícia não é uma questão somente de má fé ou de intenção criminosa de alguns integrantes tratados como heróis por alguns e maçãs podres por outros. Ela revela um problema crônico da incapacidade da polícia de usar de sua expertise – a doutrina do uso da força – que também se manifesta na indistinção policial do que é uma arma de uma mão em riste, uma furadeira, um guarda-chuva, um pedaço de pau etc.
Neste contexto de repetição rotineira de balas perdidas e achadas, intencionais ou acidentais, cabe indagar qual é a taxa de êxito tático de cada policial por modalidade de tiro policial, tipo de armamento e munição e cenário atuação? Qual a disciplina tática no uso de força potencial e concreta de cada policial? Quantas horas de treinamento de tiro cada policial faz por ano, em cenários seja em estáticos (stand de tiro), seja em cenários dinâmicos (simulações em pistas de reação)? Qual é o controle individual de uso de armas e gastos de munição nas polícias? É o próprio policial que emprega seu dinheiro melhorando o seu padrão tático de tiro?
Sabemos que não se improvisa com o emprego de força que imobiliza, detém, corta, fere e mata e cujos efeitos são, em boa medida, irreversíveis.
Sabemos todos que no Rio de Janeiro atira-se muito e atira-se mal, levando a gasto abusivo de armamentos e munições e vitimização de civis e policiais. A polícia é um meio de força suficiente e comedido. Não adianta saber dar bom dia para o cidadão e não saber atirar com segurança em cenários móveis, dinâmicos e irregulares como as cidades diante de resistências (de)sarmadas. Pior que um policial mal pago é um policial inseguro no uso de seus meios de trabalho. Policiais inseguros no uso profissional de força são presas fáceis da crença no falso heroísmo policial que esquenta suas cabeças, tornam seus corações aflitos e seus dedos nervosos.
Jacqueline Muniz* possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense (1986), mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992), doutorado em Ciência Política (Ciência Política e Sociologia) pela Sociedade Brasileira de Instrução – SBI/IUPERJ (1999) e Pós-doutorado em Estudos Estratégicos pelo PEP-COPPE/UFRJ. || PODCAST: REGIMES DO MEDO