Home Blog Page 482

O que leva militares a atirarem 80 vezes contra um carro?

Por Lidiane Malanquini¹

Era tarde de um domingo ensolarado, quando uma família carioca seguia a caminho de um chá de bebê. Essa poderia ser uma prática comum, mas, para algumas famílias e alguns corpos, circular por determinados territórios da cidade traz risco, muito risco.

Ontem, por volta de 14h30, a família de Evaldo seguia para um chá de bebê pela Estrada do Camboatá, em Guadalupe, quando, no caminho, um grupo de militares disparou 80 tiros contra o carro onde estava a família. Evaldo morreu e seu sogro segue internado para cuidados médicos. Uma mulher, que passava no momento e tentava acenar o absurdo daquela ação, também foi atingida por disparos.

Essa não foi a primeira, nem a segunda vez que um carro, nesta região, foi interceptado por tiros de fuzil. Em dezembro de 2015, a menos de dois quilômetros dali, em Costa Barros, outro carro – com cinco amigos – foi fuzilado por 111 tiros. Eles estavam comemorando o primeiro salário de Roberto como Jovem Aprendiz. Porém, nenhum deles retornou para casa. Poucos meses antes, outro veículo, com cinco jovens também, foi atingido por tiros de fuzil disparados por agentes das Forças Armadas na favela Salsa & Merengue, na Maré, quando retornava de um jogo do Flamengo. Na ocasião, o Flamengo ganhou de 5 X 1 do Cabofriense. Como bons flamenguistas, os jovens só queriam comemorar. Mas quatro deles foram atingidos pelos disparos, sendo que um perdeu uma das pernas e ficou paraplégico.

Nas três histórias, todas as pessoas envolvidas estavam apenas exercendo seu direito de ir e vir e tiveram suas vidas atravessadas por uma política de segurança que não garante às vidas este direito.
Em qual lugar do mundo, um carro poderia ser interceptado por agentes do Estado com tiros de fuzil? Nos faltam palavras para exprimir tamanha revolta diante mais essa barbárie. Como é possível, agentes do Estado fuzilarem um carro com 80 tiros de fuzil e dizer publicamente que foi um “engano”? A quem poderia ser endereçado desproporcional uso de força desses agentes? Quem poderia ser alvo de uma ação como essa? A construção da narrativa dos militares, endossada pela nota pública do Comando Militar do Leste, reforça a lógica de que em determinados espaços da cidade, determinados corpos são passíveis de tamanha violência. É como se o próprio Estado concretizasse a lógica de que moradores de favelas e periferias seriam parte de um “exército inimigo” a ser combatido pelos agentes do Estado. Ao assumir esta postura, é como se os precedentes legais, o que determina às leis, pudessem ser suspenso, inclusive por agentes do Estado.

Na descabida necessidade de justificar o injustificável, o Comando Militar do Leste informou, no dia de hoje, que os militares estariam fazendo patrulhamento de rotina na Vila Militar. O local onde aconteceu o ataque à família fica a quatro quilômetros da Vila Militar. Por que estariam os militares fazendo patrulhamento pelas ruas de Guadalupe? O que justificaria essa ação, uma vez que não temos nenhum decreto de Garantia da Lei e da Ordem vigente no estado do Rio que pudesse justificar a repressão de crimes de esfera estadual por militares? Reforçamos aqui os preceitos legais que forças militares só poderão agir com poder de polícia a partir da vigência do referido decreto.

Hoje, acordamos com mais perguntas que respostas. Com um nó na garganta de ver e perceber a forma como os direitos são desrespeitados no Brasil, sobretudo, quando estes estão direcionados à população pobre, negra e periférica. Vivemos um contexto político muito sensível e de fortes ameaças à nossa frágil democracia. Temos um Ministro da Justiça que advoga em favor do excludente de ilicitude para policiais em serviço, alegando que esse “excesso pode decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Temos um governador do estado que defende uma “política de abate”, quando os policiais estariam autorizados a “abater” pessoas armadas.

Às vezes, podemos considerar muito distante todas essas movimentações no campo da política, daquilo que consideramos o cotidiano nas favelas e periferias. Porém, estas falas e propostas reforçam uma lógica de criminalização da pobreza e dos corpos negros e legitimação de que militares pudessem “por engano” atirar 80 vezes contra um carro. As decisões para planejamento e implementação da ação de agentes públicos está pautada em escolhas. Escolhas que são políticas! Nesse sentido, é urgente pensarmos em política pública, inclusive de segurança, que tenham como valor central a garantia de direitos básicos desta parcela da população que historicamente tiveram seus direitos desrespeitados. Lutamos e acreditamos que um dia uma simples ida a um chá de bebê com a família, comemorar o primeiro salário de um amigo ou a vitória do seu time não tragam risco à vida de ninguém nesta cidade!



¹Lidiane é mulher, periférica, flamenguista, assistente social, coordenadora do Eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré e doutoranda em Serviço Social pela UFRJ.

Exército fuzila músico ‘por engano’

80 tiros foram disparados contra o carro que levava a família a um chá de bebê; crime aconteceu em Guadalupe, Zona Norte

Por Camille Ramos

Na tarde de ontem, mais uma morte chocou a cidade. Desta vez, o soldados do Exército Brasileiro disparam 80 tiros contra o carro da família de Evaldo dos Santos Rosa, de 51 anos, que era músico e trabalhava como segurança. O crime aconteceu em Guadalupe, Zona Norte do Rio de Janeiro, quando a família de Evaldo passava pelo local a caminho de um chá de bebê. Segundo a apuração do G1, cinco pessoas estavam no carro. A mulher, o filho do músico e uma amiga conseguiram sair do carro sem nenhum ferimento. O Sogro de Evaldo, Sérgio Gonçalves de Araújo, foi atingido e socorrido. Até o fechamento desta matéria, inda não se tinha informações sobre seu estado de saúde. Um homem, ainda não identificado, também estava próximo à cena e foi baleado.

Em nota, o Comando Militar do Leste (CML) primeiro negou ter atirado contra uma família e disse ter respondido a uma “injusta agressão” de “assaltantes” próximo ao Piscinão de Deodoro. À noite, o CML informou, em nova nota, que o caso está sendo investigado pela Polícia Judiciária Militar com a supervisão do Ministério Público Militar. Evaldo deixa a mulher e um filho de sete anos.

Por quê?

Lidiane Malanquini, coordenadora do Eixo de Segurança Pública da Redes da Maré, correlaciona o crime a um padrão promovido pelas políticas de segurança do Estado na Zona Norte e periferias da cidade. “Como que o CML usa como justificativa metralhar um carro achando que era de bandidos? Como se o fato do carro ser de bandidos pudesse legitimar os 80 tiros? Como o território periférico, favelado e a população que vive neles é vista como um exército inimigo que pode ter o carro fuzilado? Então, independentemente de ser uma família ou bandidos, por que nesse lugar se pode dar tiros?”, questiona.


Dicionário de Favelas Marielle Franco será lançado quarta-feira, 10, na Fiocruz

0

Por: Ascom/ICICT/Fiocruz

Como parte das comemorações dos 33 anos do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde – Icict, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), haverá o lançamento do Dicionário de Favelas Marielle Franco, na quarta-feira, 10 de abril.

Um dos objetivos do Dicionário é ser um espaço facilitador para o resgate da memória da cidade e identidades coletivas de agrupamentos territoriais e comunidades. Ele também é um espaço virtual para congregar o conhecimento sobre as favelas de forma interdisciplinar e interinstitucional, que busca mobilizar atores com diferentes inserções sociais em uma rede que busque a produção coletiva de conhecimentos neste campo. A sua plataforma é baseada em Wiki, daí o nome WikiFavelas.

Segundo Sônia Fleury, coordenadora do Dicionário de Favelas Marielle Franco, “ele é um resgate de memória das favelas e também da cidade do Rio de Janeiro”. O Dicionário já começa com 258 verbetes e já há 67 colaboradores, entre pesquisadores acadêmicos e intelectuais da favela, além da contribuição da população em geral.

Os verbetes são os mais variados Por exemplo, é possível saber um pouco da história dos bailes funks, no verbete ‘baile funk’, ou saber o significado das AEIS – ‘Área Especial de Interesse Social’, ou ‘Carnaval de rua na Maré’, ou ‘Guerra ao crime organizado? Favelas e intervenção militar’, ‘Projeto Vamos Desenrolar: Produção de Conhecimento e Memórias’, só para citar alguns exemplos.

A iniciativa pioneira do Dicionário teve o apoio e a participação de Marielle Franco, que não só foi uma entusiasta da obra, como – a convite de Sônia Fleury – escreveu uma ementa e uma proposta de verbete sobre a sua monografia “UPP – A redução da favela a três letras: uma análise da Política de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro”, que consta no Dicionário. Segundo a coordenadora do Dicionário, “ela estava realmente muito envolvida e entusiasmada. Com o seu assassinato, decidimos colocar o seu nome no Dicionário”, que passou de Dicionário Carioca de Favelas para Dicionário de Favelas Marielle Franco.

Durante o evento de lançamento haverá apresentações culturais, mesa de abertura, a apresentação do WikiFavelas – o Dicionário de Favelas Marielle Franco, uma roda de conversa e o encerramento, com mais apresentações culturais.

O lançamento será realizado a partir das 13h30, no Salão de Leitura da Biblioteca de Manguinhos, da Fiocruz, que fica na Avenida Brasil, 4.365, em Manguinhos, no Rio de Janeiro (RJ). A entrada é franca, mas é necessária a inscrição no link http://eventos.icict.fiocruz.br

Dicionário de Favelas Marielle Franco – http://wikifavelas.com.brLeia mais em: http://bit.ly/2uPg6SQ

Edital para seleção de entrevistadores/as

0

Para aplicação de questionário de pesquisa

Construindo pontes é uma pesquisa multidisciplinar desenvolvida no conjunto de favelas da Maré. A iniciativa pretende identificar através de abordagens quantitativas e qualitativas, os fatores que afetam e/ou contribuem para a melhora da saúde mental dos habitantes de territórios urbanos que estão sujeitos a diversas vulnerabilidades, além de avaliar o impacto de projetos artísticos e culturais para o bem-estar dessa população. Esse projeto, que conta com apoio do Conselho Econômico e Social do Reino Unido (ESRC) e Conselho de Artes e Humanidades do Reino Unido (AHRC), é resultado de uma parceria entre Redes da Maré, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Queen Mary University of London (Reino Unido).

Sobre a Redes da Maré:

A Redes da Maré é uma instituição da sociedade civil fundada por pessoas envolvidas com o movimento comunitário no conjunto de favelas da Maré e, também, na cidade do Rio de Janeiro. Buscamos, através de vínculos com instituições da sociedade civil, poder público, universidades, institutos de pesquisa, órgãos e empresas públicas e privadas, produzir iniciativas de intervenção na Maré. A Redes da Maré desenvolve mais de 30 projetos na área de Educação; Arte e Cultura; Desenvolvimento Territorial; Memória e Identidade; Segurança Pública e Acesso à Justiça.

A pesquisa terá como base o Espaço Normal, Espaço de referência sobre drogas, que é fruto de um trabalho de quatro anos com as cenas abertas de consumo de drogas na Maré. O equipamento, inaugurado em maio de 2018, tem como proposta ser um local de convivência para os que procuram a Redes da Maré em busca de acolhimento, cuidado, trocas e com demandas básicas, como as de alimentação, higiene e respeito

Pesquisadora responsável: Eliana Sousa Silva

Sobre o grupo de pesquisa Políticas de Prevenção da Violência, Acesso à Justiça e Educação em Direitos Humanos

Grupo de pesquisa “Políticas de Prevenção da Violência, Acesso à Justiça e Educação em Direitos Humanos”, vinculado ao programa de Pós-graduação em Serviço Social da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenou diferente projeto de pesquisas no campo do Acesso à Justiça, Formas alternativas de Resolução de Conflitos, Prevenção da Violência, Segurança Pública e Populações em Situação de Rua. Atualmente dedica-se ao estudo da Violência Urbana em territórios dominados por grupos armados e sua intersecção com racismo estrutural, violência de gênero e políticas de drogas.

Pesquisadora responsável: Miriam Krenzinger

Sobre o PROJAD

O PROJAD é o Programa de Estudos e Assistência ao Uso Indevido de Drogas do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O PROJAD desenvolve atividades de assistência, pesquisa e ensino sobre problemas relacionados ao uso de drogas desde 1996. Entre os estudos desenvolvidos pelo PROJAD encontram-se pesquisas sobre acesso ao tratamento de pessoas com problemas com drogas por meio de abordagem quanti e qualitativa publicados em diversas revistas científicas nacionais e internacionais.

Pesquisador responsável: Marcelo Cruz

Sobre o NECCULT – Universidade Federal do Rio Grande do Sul

O Núcleo de Estudos em Economia Criativa e da Cultura (NECCULT) é um ambiente interdisciplinar de ensino, pesquisa e extensão vinculado à Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS. O NECCULT surge da confluência de diferentes iniciativas convergentes no âmbito do estudo da Economia Criativa, Cultura e Inovação. O Núcleo busca agregar os esforços dos trabalhos sendo desenvolvidos no âmbito do Observatório de Economia Criativa do Rio Grande do Sul e do grupo de pesquisa do CNPq em Economia Criativa, Cultura e Desenvolvimento.

Pesquisador responsável: Leandro Valiati

Sobre a Queen Mary University of London (People’s Palace Projects)

People’s Palace Projects (PPP) é uma organização não governamental de pesquisa e desenvolvimento de projetos na área das artes e justiça social, com sede no departamento de teatro da Queen Mary University of London, no Reino Unido. Seus projetos focam em justiça social e direitos humanos e impacto de iniciativas culturais e artísticas no acesso a esses direitos, através da pesquisa acadêmica, projetos artísticos, iniciativas educacionais e debates. Ao longo de duas décadas, manteve foco especial no fortalecimento dos vínculos culturais e acadêmicos entre o Brasil e o Reino Unido.

Pesquisador responsável: Paul Heritage

Sobre as vagas

Habilidades e Requisitos:

? Curso superior completo;

? Ter interesse na área de Política de drogas, saúde mental e violência urbana;

? Experiência com pesquisa e aplicação de questionários quantitativos.

? Capacidade de organização (planejamento, cumprimento de prazo, alimentação da base de dados);

? Conhecimento e habilidades em informática;

? Interesse em processos de formação, estudo e pesquisa;

? Compromisso ético nas relações sociais e de trabalho.

? Capacidade de trabalho em equipe.

Principais atividades a serem realizadas:

? Participação no ciclo de formação

? Aplicação de questionários em domicílios da Maré.

? Supervisão semanal com os coordenadores de campo e outros pesquisadores.

? Elaboração de relatório da experiência.

Critérios preferenciais:

? Conhecer e circular bem na Maré.

? Ter experiências em trabalho de campo, pesquisa e/ou aplicação de questionários em territórios de favela.

? Conhecer estudar temas relacionados a política de drogas, saúde mental e/ou violência.

Disponibilidade:

? Horário regular, incluindo sábados e horário noturno pontualmente.

? Segunda de manhã para supervisão

? Participação na formação dos pesquisadores : carga horária aproximadamente 30 horas entre 29/04 e 17/05

Sobre as vagas:

Vaga : 06 entrevistadores/as para pesquisa de campo

Carga horária: 22h semanais flexíveis (a combinar)

4 meses (16 semanas) de campo – em média 50 entrevistas por mês / 4 entrevistas por dia + 1 supervisão semanal

Valor bruto aproximado: 3.000 reais mensais (inclui aplicação questionário + ajuda de custo + supervisão semanal + relatoria)

Cronograma :

03/04 à 12/04: Período de inscrições

15/04 a 22/04: Entrevistas com os pré-selecionados

24/04: Anúncio dos entrevistadores/as escolhidos

Para concorrer a vaga por favor enviar o currículo e uma breve carta de intenção sobre o interesse em participar da pesquisa para o email : [email protected] com o assunto: Vaga de entrevistador(a)

O mais carioca de todos os santos

0

Seja no Catolicismo, na Umbanda ou no Candomblé, São Jorge – ou Ogum – movimenta uma imensa legião de fiéis

Maré de Notícias #99

Por: Camille Ramos

Cantado por Zeca Pagodinho, Jorge Ben Jor, Caetano Veloso e muitas outras vozes da nossa música, São Jorge, o santo guerreiro, está presente como nenhum outro na cultura carioca. Ele já foi até tema de novela e possui uma multidão de fiéis fervorosos, tanto na Igreja Católica como no Candomblé e na Umbanda. São Jorge ou Ogum, independentemente de como o clamam, é celebrado no dia 23 de abril e, no Rio, a data é marcada por ritos de fé e festas e, desde 2008, com feriado estadual.

São Jorge é venerado como mártir cristão e é representado pela imagem de um cavaleiro, vestido com armadura de metal e lança na mão, que batalhou como soldado do Exército Romano, conquistando muitas vitórias e combatendo injustiças em nome de Jesus. Nas religiões de matriz africana que consideram o sincretismo, São Jorge encarna os orixás do panteão africano e, aqui no Rio, especificamente, é conhecido como Ogum, orixá ligado ao ferro, ao aço e ao fogo, características que representam a força que predomina sobre a injustiça e sua invocação tem por objetivo principal proteger e orientar seus fiéis no cotidiano.

Missas e feijoadas

Muitas são as celebrações pela Cidade. A Igreja Matriz de São Jorge, em Quintino, recebe cerca de 500 mil fiéis que começam a chegar por volta das 2h da manhã para acompanhar a tradicional alvorada, com queima de fogos, e a primeira missa, que é celebrada às 5h. Airton Alves, dono do Boteco Carioca, na comunidade do Sem Terra, no Parque União, devoto de São Jorge e filho de Ogum, começa o dia 23 de abril no pátio de igreja. “Chego 3h30 da manhã em Quintino, saio de lá às 7h, e já venho direto para abrir o bar. Toda a minha família trabalha comigo. Costumo fazer 15 quilos de feijão, que minha mãe me ajuda a preparar”, conta o comerciante que, desde 2015, organiza a festa em seu bar para cerca de 600 pessoas, por gratidão a São Jorge, e arca com todos os custos da feijoada, que é servida gratuitamente.

Assim como Airton, muitos fiéis começam o dia na igreja e terminam nas clássicas feijoadas e sambas. Apesar do padroeiro da cidade ser São Sebastião e também movimentar multidões de fiéis em procissões, a festa de São Jorge é maior e arrasta milhares de devotos alegres e festivos, com ida às igrejas, com velas acesas, na devoção Católica; aos batuques de candomblés e umbandas, com cerveja e feijoada, para saudar Ogum; e também a ambos os espaços de tradição religiosa, como é o caso de muitos devotos que transitam pelo catolicismo e pelas religiões de matriz africana simultaneamente.

Sincretismo

O que faz o dia 23 de abril ser uma das maiores festas religiosas da Cidade (maior até que a do seu padroeiro, São Sebastião) é, sem dúvida, a mistura das religiões e as características que aproximam o orixá e o santo – uma vez que ambos são baluartes de bravura e de força para contornar dificuldades.

Para Tata ria Nkisi Otuajô, pai de santo de uma casa de Candomblé, no entanto, mesmo com o sincretismo presente em nossa cultura, e embora São Jorge se assemelhe a Ogum, é necessário respeitar as divindades em seus territórios religiosos. “Por mais que exista uma tolerância na associação existente na tradição, é sabido que o orixá é o orixá e o santo é o santo, pois não existe nenhum rito, nenhuma liturgia que se assemelham ou fazem interseção, quando se trata dos louvores e reverências a ambos”, explica.

O fato é que, independentemente da crença que se cultiva, é essencial respeitar a “imensa legião de Jorge”, que celebra sua fé em um dia no qual as diferenças são diminuídas e os mesmos espaços compartilhados por pessoas de religiões diferentes, cultivando cada um, à sua maneira, a sua divindade e pedindo força e proteção para os dias difíceis. Salve Jorge, Ogunhê!

Feijoada e samba: devoção alia rituais religiosos, manifestações culturais e festas populares | Foto: Carolina Andrade

Livros: a maior viagem

0

Sem os incentivos do Estado, Maré conta com iniciativas independentes para garantir o acesso de crianças aos livros

Maré de Notícias #99

Por: Jéssica Pires

O Conjunto de Comunidades da Maré têm 16 favelas e 140 mil habitantes. É o 9º bairro mais populoso, e o maior conjunto de favelas da cidade do Rio de Janeiro, de acordo com o Censo Maré, pesquisa e publicação da Redes da Maré e Observatório de Favelas. Atualmente, para o atendimento a toda essa população existe apenas uma biblioteca municipal: o Espaço de leitura Jorge Amado, que fica na Rua Ivanildo Alves, s/nº, Complexo da Maré (dentro da Lona Cultural Municipal Herbert Vianna). As três outras bibliotecas da Maré são iniciativas locais. A Biblioteca Nélida Piñon é iniciativa de um morador da favela Marcílio Dias; o Instituto Vida Real também abre às portas ao público como um espaço para leitura, e a Biblioteca Popular Escritor Lima Barreto, iniciativa da Redes da Maré. A Biblioteca Lima Barreto atende também o público infantil com a Sala de Leitura Maria Clara Machado.

Na Maré eu só conheço duas bibliotecas. Eu acho pouco, tinha que ter muito mais para todas as crianças poderem aproveitar essa parte da leitura, uma em cada comunidade. E que a gente pudesse trocar conhecimento também. Eu acho injustiça que nem todas as crianças possam ter acesso”, lamenta Ketellem Cristina, estudante frequentadora da Biblioteca Lima Barreto. Para Luciene Vieira, coordenadora da biblioteca, a escassez nos espaços de leitura e bibliotecas na Maré é apenas reflexo da negação de direitos básicos na Maré. “O primeiro contato com os livros com certeza tem influência na vida de um possível leitor ativo. É muito simbólico termos jovens como a Ketellem que mesmo com a disputa da era da tecnologia e das redes sociais com o livro, optam por estar em um ambiente como esse, uma biblioteca comunitária. E ainda reconhecer esse espaço como potência, como uma ferramenta importante. A biblioteca também configura-se como espaço de encontro.”

Desde os doze anos, Ketellem frequenta a Sala de Leitura Maria Clara Machado. A busca por um espaço de leitura foi espontânea pela jovem que acabou de completar 15 anos. Ketellem estuda no Colégio Estadual Cesar Perneta, no Parque União, e a escola não tem biblioteca, como é comum nas escolas na Maré. Além de frequentar a biblioteca, ela também é multiplicadora da importância da atitude: traz suas irmãs mais novas para a biblioteca e sempre que pode pega livros para os pais lerem em casa.

Além de frequentar diariamente a biblioteca, a jovem faz cursos no Instituto Vida Real e diz que pretende mudar de escola para garantir um acesso melhor a educação. Ketellem tem sonhos grandes. “Eu gosto de ler livros infantis, romances e aventura. A Procura do Par Perfeito é o meu atual livro favorito. Ler aumenta meu conhecimento, minha inteligência, é tipo um exercício mental. Se você está bem, você lê; se você não está bem, você não lê”. A leitura ativa, e o convívio na biblioteca já fazem parte da rotina da jovem.

A importância do incentivo à leitura infanto-juvenil

O Ministério da Educação divulgou pesquisas científicas realizadas nos Estados Unidos (na Universidade de Stanford) e na França (na Unidade de Neuroimagiologia Cognitiva do Instituto Nacional Francês de Saúde e Pesquisa Médica, Inserm/Comissão de Energia Atômica e de Energias) que comprovam que a leitura faz bem ao cérebro. “Eu vejo muita diferença na minha leitura, na forma com que eu falo com as pessoas e me expresso. Descubro sempre novas palavras, e descobrindo as palavras vou buscando o significado delas, isso é muito bom. Acabo aprendendo mais com os livros do que na escola. Porque quando você gosta de ler, você quer saber mais e mais. Tenho vontade de ser arquiteta, designer, engenheira e estilista. Sei que vai ser possível isso tudo, porque acredito que um livro pode mudar a vida de uma pessoa”, conta Ketellem.

Para Daniela Name, curadora, crítica de arte e assessora de cultura da Redes da Maré, estamos vivendo tempos sombrios, nos quais a educação está visivelmente ameaçada. Segundo ela, é fundamental termos a literatura presente na escola e livros acessíveis para quem não pode comprar – daí a importância das bibliotecas públicas. “Um livro pode realmente abrir novos mundos. Não apenas no que diz respeito a conhecimento objetivo do mundo, sobretudo pelo que nos oferece de ficção e fantasia. É com a literatura, uma modalidade da arte, que percebemos que podemos imaginar outros mundos, outras formas de viver o espaço, o tempo, nossas relações afetivas. Um livro faz com que você crie afinidade até mesmo com coisas e pessoas que não existem. Isso é revolucionário, pois apresenta novas opções para a vida”, complementa.

Em busca de melhorias concretas para a educação na Maré

A Biblioteca Lima Barreto e a Redes da Maré desenvolvem o projeto “Maré de Ler”, que tem como objetivo fortalecer e ampliar as ações desenvolvidas na biblioteca, garantindo uma programação diferenciada e contínua. Sensibilizar as crianças e familiares para a cultura do livro também é um objetivo do projeto. “A Ketellem é uma adolescente que se enquadra como resultado desse processo. Além de ela fazer a leitura na biblioteca, ela leva os livros pra casa, ou seja, contribuímos para a formação de novos leitores, sejam adultos, famílias ou crianças”, fala Luciene.

Em 2005, a Biblioteca Popular Escritor Lima Barreto foi criada para atender à demanda de jovens e adultos da Maré garantindo um espaço onde pudessem ler e estudar. Em 2011, foi aberta Sala de Leitura Maria Clara Machado, para o público infantil. Os números comprovam o sucesso da biblioteca que é referência na região: tem uma média anual de doze mil atendimentos a crianças e adultos, entre empréstimos e consultas de um acervo de quatorze mil livros, CDs, DVDs e participação em atividades. A sala dos adultos é ponto de encontro de pessoas se preparando para provas do Ensino Médio e do vestibular. Uma turma concentrada que costuma trocar experiências e ensinamentos. Na sala de leitura infantil as atividades são direcionadas a contação de história, oficinas, material para desenho, pintura, brincadeiras e jogos.