O que leva militares a atirarem 80 vezes contra um carro?

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Por Lidiane Malanquini¹

Era tarde de um domingo ensolarado, quando uma família carioca seguia a caminho de um chá de bebê. Essa poderia ser uma prática comum, mas, para algumas famílias e alguns corpos, circular por determinados territórios da cidade traz risco, muito risco.

Ontem, por volta de 14h30, a família de Evaldo seguia para um chá de bebê pela Estrada do Camboatá, em Guadalupe, quando, no caminho, um grupo de militares disparou 80 tiros contra o carro onde estava a família. Evaldo morreu e seu sogro segue internado para cuidados médicos. Uma mulher, que passava no momento e tentava acenar o absurdo daquela ação, também foi atingida por disparos.

Essa não foi a primeira, nem a segunda vez que um carro, nesta região, foi interceptado por tiros de fuzil. Em dezembro de 2015, a menos de dois quilômetros dali, em Costa Barros, outro carro – com cinco amigos – foi fuzilado por 111 tiros. Eles estavam comemorando o primeiro salário de Roberto como Jovem Aprendiz. Porém, nenhum deles retornou para casa. Poucos meses antes, outro veículo, com cinco jovens também, foi atingido por tiros de fuzil disparados por agentes das Forças Armadas na favela Salsa & Merengue, na Maré, quando retornava de um jogo do Flamengo. Na ocasião, o Flamengo ganhou de 5 X 1 do Cabofriense. Como bons flamenguistas, os jovens só queriam comemorar. Mas quatro deles foram atingidos pelos disparos, sendo que um perdeu uma das pernas e ficou paraplégico.

Nas três histórias, todas as pessoas envolvidas estavam apenas exercendo seu direito de ir e vir e tiveram suas vidas atravessadas por uma política de segurança que não garante às vidas este direito.
Em qual lugar do mundo, um carro poderia ser interceptado por agentes do Estado com tiros de fuzil? Nos faltam palavras para exprimir tamanha revolta diante mais essa barbárie. Como é possível, agentes do Estado fuzilarem um carro com 80 tiros de fuzil e dizer publicamente que foi um “engano”? A quem poderia ser endereçado desproporcional uso de força desses agentes? Quem poderia ser alvo de uma ação como essa? A construção da narrativa dos militares, endossada pela nota pública do Comando Militar do Leste, reforça a lógica de que em determinados espaços da cidade, determinados corpos são passíveis de tamanha violência. É como se o próprio Estado concretizasse a lógica de que moradores de favelas e periferias seriam parte de um “exército inimigo” a ser combatido pelos agentes do Estado. Ao assumir esta postura, é como se os precedentes legais, o que determina às leis, pudessem ser suspenso, inclusive por agentes do Estado.

Na descabida necessidade de justificar o injustificável, o Comando Militar do Leste informou, no dia de hoje, que os militares estariam fazendo patrulhamento de rotina na Vila Militar. O local onde aconteceu o ataque à família fica a quatro quilômetros da Vila Militar. Por que estariam os militares fazendo patrulhamento pelas ruas de Guadalupe? O que justificaria essa ação, uma vez que não temos nenhum decreto de Garantia da Lei e da Ordem vigente no estado do Rio que pudesse justificar a repressão de crimes de esfera estadual por militares? Reforçamos aqui os preceitos legais que forças militares só poderão agir com poder de polícia a partir da vigência do referido decreto.

Hoje, acordamos com mais perguntas que respostas. Com um nó na garganta de ver e perceber a forma como os direitos são desrespeitados no Brasil, sobretudo, quando estes estão direcionados à população pobre, negra e periférica. Vivemos um contexto político muito sensível e de fortes ameaças à nossa frágil democracia. Temos um Ministro da Justiça que advoga em favor do excludente de ilicitude para policiais em serviço, alegando que esse “excesso pode decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Temos um governador do estado que defende uma “política de abate”, quando os policiais estariam autorizados a “abater” pessoas armadas.

Às vezes, podemos considerar muito distante todas essas movimentações no campo da política, daquilo que consideramos o cotidiano nas favelas e periferias. Porém, estas falas e propostas reforçam uma lógica de criminalização da pobreza e dos corpos negros e legitimação de que militares pudessem “por engano” atirar 80 vezes contra um carro. As decisões para planejamento e implementação da ação de agentes públicos está pautada em escolhas. Escolhas que são políticas! Nesse sentido, é urgente pensarmos em política pública, inclusive de segurança, que tenham como valor central a garantia de direitos básicos desta parcela da população que historicamente tiveram seus direitos desrespeitados. Lutamos e acreditamos que um dia uma simples ida a um chá de bebê com a família, comemorar o primeiro salário de um amigo ou a vitória do seu time não tragam risco à vida de ninguém nesta cidade!



¹Lidiane é mulher, periférica, flamenguista, assistente social, coordenadora do Eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré e doutoranda em Serviço Social pela UFRJ.

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