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Ir e vir, uma batalha diária

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Maré de Notícias #92 – 03/09/2018

Para trabalhar ou se divertir, os moradores da Maré enfrentam dificuldades para se locomoverem

Maria Morganti

Por volta das 5h45 da manhã, o despertador toca na casa de Célia Silva, moradora do Parque União. Às 6h30, ela precisa estar com os pés na rua se quiser ir para o trabalho, em Ipanema, sentada em um dos ônibus da linha 483. Se chegar um pouco mais tarde na fila – que é grande – para pegar o ônibus, corre o risco de fazer a viagem em pé. De qualquer jeito, vai em um ônibus quebrado, velho e sem ar-condicionado. Se tiver chovendo, tudo piora. Para ninguém ficar encharcado, a janela precisa ser fechada. Não importa a quantidade de pessoas que estiverem amontoadas. Pra ficarem secos, precisam suportar o calor. A volta é ainda mais sacrificante: Célia precisa pegar dois ônibus. “Infelizmente é muito precário. Horrível. É uma batalha todos os dias, essa guerra aí”, desabafa a empregada doméstica que faz esse percurso cinco dias por semana, há nove anos.

                E nos fins de semana? “Fazer coisas perto de casa, que não precise pegar ônibus. A gente ainda tem uma vantagem que, aqui, na Maré, tem dança, teatro, vários programas. Tem vários projetos que ajudam nesse quesito, mas coisas fora da Maré são complicadas para ir. Ainda mais por causa da passagem, porque do jeito que o País está, a gente não está tendo nem condição de manter nossa comida, que dirá passeios assim, com passagem! Infelizmente a gente deixa de sair da Maré por causa do transporte público”, afirma Antônio Ferreira, estudante de 17 anos e morador da Nova Holanda.

 

A realidade de muitos

                A realidade de Célia e Antônio não é muito diferente dos outros quase 140 mil moradores do conjunto de favelas da Maré. Para 40% dessa população, a locomoção na cidade é considerada uma questão muito importante no seu dia a dia, segundo a pesquisa “1ª Amostra sobre Mobilidade Urbana na Maré”, realizada em 2014, fruto da parceria entre a Redes da Maré, o Observatório de Favelas e o Centro para Excelência e Inovação na Indústria Automóvel. Dos que responderam que ir e vir é uma questão “muito importante”, mais de 40% justificam que é por causa do deslocamento para trabalhar; e 16% atribuem a afirmação à necessidade, hábito ou direito de circular na cidade, ou de se deslocar para outros lugares.

Das pessoas que responderam que é pouco importante ou sem importância a locomoção na cidade no dia a dia, a maioria afirmou que o motivo da resposta é por não ter o costume de sair de casa ou da Maré. E desse total de pessoas que saem da Maré, quase 50% respondem que é só para ir trabalhar. Segundo o professor e especialista em mobilidade urbana do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ), Mauro Kleiman, apesar de o Rio de Janeiro ter vários modais presentes, não existe um planejamento que os integre e garanta o direito de mobilidade. “No Rio de Janeiro, especificamente, você tem todos os modais presentes: trens, metrôs, barcas, VLT, ônibus, vans, mototáxis. Apesar disso, não existe nenhum planejamento de integração entre eles e muito menos uma integração entre transportes e uma política de território, de planejamento”.

Haja sola de sapato

Com área de 4,3 km² e com mais de 5 km de extensão, correspondendo a quase 10% do total de uma das vias mais importantes da cidade, a Avenida Brasil, o bairro Maré pode ser considerado um exemplo dessa “falta de planejamento”. “A gente anda muito, ainda mais porque a gente não tem transporte. Os transportes que têm são vans e Kombis. Ônibus, nem pensar”, conta Adriana Ferreira, que mora na favela Marcílio Dias e trabalha na Academia Luta Pela Paz, na Nova Holanda e, por isso, faz o trajeto de uma favela para a outra todos os dias. Atualmente, não existe nenhuma linha de ônibus regular que garanta aos moradores o acesso ao direito de ir e vir entre as 16 favelas da Maré.  Outros ônibus que faziam o trajeto daqui para fora da Maré, como as linhas 330 da Empresa Ideal (com o percurso do Castelo, no Centro, até o Parque União), só passa na Maré uma vez ao dia. A grande maioria não existe mais, como o 320 – Praça XV / Parque União, 955 e 957, que faziam Maré/Alvorada, o 405, de Ramos ao Cosme Velho, e o 452, que saía da Maré com destino à Copacabana. Perguntada sobre o motivo da extinção das linhas, a Secretaria Municipal de Transporte afirmou que “as linhas 442 (Maré x Copacabana – via Santo Cristo), 443 (Maré x Leblon – via Central) e 444 (Maré x Copacabana – via Santa Bárbara) saem da Maré. Apenas a 442 e a 955 estão ativas. A linha 431C é intermunicipal. As demais não constam na relação de linhas ativas da SMTR”.

“Por motivo de segurança”

Quem pode e tenta pegar um táxi ou um Uber para sair de casa ou voltar para a favela, pode ouvir do motorista: “não entro em favela”. A Central 1746 de Atendimento ao Cidadão recebeu, no período de janeiro de 2017 a julho de 2018, o total de 879 solicitações e reclamações sobre táxis na cidade. Apesar de ser uma concessão pública, o que na teoria deveria garantir o acesso desse tipo de transporte à favela, segundo a Secretaria Municipal de Transportes eles “não têm normas que recomendem tráfego em comunidades. Os passageiros/usuários de táxi e aplicativos têm o direito de escolher que rota seguir. Lembrando que violência nas vias é questão de segurança pública”.

Ana Clara Alves, 19 anos, é moradora do Morro do Timbau e, num sábado à noite, pediu um Uber para transportá-la com a família. Ela estava na cabine policial da Linha Amarela, na altura da Passarela do Pinheiro e queria ir para a Praça do Parque União. O motorista da empresa mandou, pelo chat disponível do aplicativo, a seguinte mensagem: “Boa noite, qual destino?” Após a estudante responder, ele cancelou a viagem. Na segunda tentativa, o motorista, pelo mesmo chat, perguntou para onde Ana ia, “por questões de segurança”. Ela respondeu, “o senhor não vai entrar na favela”. A mensagem foi notificada como “lida”, mas o motorista não respondeu, a família da Ana não conseguiu embarcar e, segundo ela, ele nem cancelou a viagem. “Não foi a primeira vez”, desabafa a estudante de jornalismo. Entramos em contato com a assessoria de imprensa da empresa Uber, mas não obtivemos resposta.

Mototáxi que salva

Mototaxista Luan Farias: há 11 anos auxiliando os moradores a se deslocarem pela cidade | Foto: Jéssica Pires

Alguns carros particulares como o “Uber Maré” e outros transportes executivos prestam esse serviço na favela (ver boxe). No dia 24 de setembro, é comemorado o dia nacional de um dos meios de transporte mais usados em favelas de toda a cidade: o mototáxi. Segundo descrito no Projeto da Lei, sancionado em 2007, “no Brasil, em menos de 10 anos de existência, a atividade de mototáxi, exercida predominantemente por jovens, consolidou-se nos mais diversos centros urbanos de todo o País, em especial nas regiões menos assistidas pelo poder público, constituindo uma realidade irreversível no transporte de passageiros. No contexto do desenvolvimento social, no qual se conjugam a pobreza e a possibilidade de remuneração, o mototáxi se configura como uma realidade de mercado para as comunidades mais pobres, contribuindo para a superação da vulnerabilidade de deslocamento”.

No Rio, o Decreto que regulamentou o serviço de transporte de passageiros por moto, o trabalho de mototaxista, foi assinado em março deste ano, e estabeleceu que para exercer a profissão é obrigatório ter mais de 21 anos e habilitação da Categoria A. Luan Farias, “cria” da Maré e mototaxista há 11 anos, confessa que não sabia do dia dedicado à sua profissão. Atualmente, trabalha no ponto da Passarela 7, na Escola Bahia, e conta que leva por dia cerca de sete pessoas durante as 8 horas de trabalho que cumpre diariamente. Perguntado se ao longo desses anos alguma história o marcou, Luan diz que são tantas, que nem consegue lembrar. “São tantas que, pra eu lembrar aqui, acho até difícil”. Se gosta da profissão? “Sim, claro que eu gosto. É o que me sustenta, né? A credibilidade de comprar minhas coisas, não depender de ninguém, só eu trabalhar. E me ajuda em tudo, já comprei uma casa, já comprei carro, comprei moto”.

Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro visita à Maré no pós-operação

Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro visita à Maré no pós-operação

A ação, realizada na última segunda-feira (20), deixou saldos negativos; Defensoria e outras organizações seguem se articulando para apurar violações de direitos

Em 22/08/2018

A Redes da Maré e outras organizações da região circularam nos pontos críticos da operação policial realizada na última segunda (20), acompanhando a Defensoria Pública do Estado. A Defensoria integra o Circuito Favelas por Direito, um conjunto de organizações da sociedade civil e instituições públicas que se mobilizam para ir aos territórios impactados pelas operações e promoverem uma escuta qualificada dos moradores.

O objetivo é coletar informações de violações de direitos para produzir relatórios unificados das operações. No fim do ano, os dados são consolidados em um documento geral, englobando todas as visitas. Acredita-se que essa é uma forma de monitorar as violações no contexto da intervenção militar.

A visita, realizada no dia seguinte à operação, pôde avaliar um momento importante desse processo: a tensão dos habitantes na retomada do cotidiano. Estiveram presentes, Daniel Lozoya, defensor público do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria (NUDEDH); Rodrigo Pacheco, subdefensor-geral; e Pedro Strozenberg, ouvidor-geral da Defensoria Pública do Estado. Junto à equipe do Eixo de Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré e outras organizações, os defensores visitaram o local onde um jovem foi torturado e morto na operação e ouviram moradores e representantes de associações. “A ação policial é discriminada na favela por causa disso. Eles chegam e falam que é pra bater, é pra matar. O policial falou: ‘hoje eu quero ver sangue aqui na comunidade’”, relatou um morador que prefere não se identificar.

O Maré de Direitos segue trabalhando em busca da garantia e ampliação de direitos e acesso à justiça dos moradores da Maré. São realizados atendimentos ao público às sextas-feiras, de 9h às 13h, na sede da Redes da Maré (Rua Sargento Silva Nunes, 1012, Nova Holanda), e acolhimento a denúncias de violações de direitos em dias de operações policiais pelos telefones 3105-5531 e 99924-6462. Além disso, são realizados plantões, que se revezam quinzenalmente, na Lona Cultural da Maré e na Associação de Moradores da Vila do João às quartas-feiras, de 9h às 12h.

Homicídio, truculência e ilegalidade marcam operação na Maré

Homicídio, truculência e ilegalidade marcam operação na Maré

Ação durou mais de 14 horas, deixou um morto, dezenas de feridos e milhares de cidadãos indignados

Em 21/08/2018 – Por Eliane Salles

As primeiras horas de ontem, (20/8), já sinalizavam para os 140 mil habitantes das favelas da Maré que aquele seria um dia bastante difícil. Por volta de 1h da madrugada, as Forças Armadas cercaram a comunidade. Fogos de artifícios foram disparados. Assustados, moradores que participavam de um pagode entraram em pânico. No meio da correria, algumas pessoas se machucaram. Isso era apenas o prenúncio do que estava por vir: uma ação marcada por homicídio, truculência e ilegalidade, que durou mais de 14 horas ininterruptamente, levando pânico, indignação, terror e perdas materiais a uma população cansada de ver seus direitos fundamentais desrespeitados.

Segundo relatos de moradores, a operação efetivamente (leia-se a invasão pelas forças policiais) começou por volta das 5h: apoiados pelo cinturão formado pelas Forças Armadas no entorno da Maré, policiais do 22° Batalhão, do Batalhão de Choque e do Batalhão de Operações Especiais (Bope) entraram nas favelas Nova Holanda, Parque Maré, Rubens Vaz e Parque União. Não se sabe, até momento, quantos policiais foram destacados para essas comunidades. É consenso, porém, que não foram poucos os que circulavam pelas ruas das favelas, a pé ou em carro blindado (Caveirão), abordando os moradores com truculência.

A equipe de plantão da Maré de Direitos recebeu, ao longo do dia, várias denúncias de violação de direitos, entre elas, o arrombamento de um carro e a invasão de duas casas, uma no Parque Maré; e outra na Nova Holanda. Em ambas as casas, a polícia não tinha mandado de busca e apreensão e deixou rastros de destruição, danificando móveis e eletrodomésticos. Na Nova Holanda, chegaram ao cúmulo de arremessar o cachorro da casa, um poodle, do terceiro andar. O animal sobreviveu.

O pior, no entanto, ainda estava por vir. Por volta das 18h, o plantão da Maré de Direitos recebeu uma ligação denunciando a tortura de quatro jovens no Campus Maré, onde ficam várias escolas da região. Mesmo em meio ao clima tenso, a equipe da Redes Da Maré partiu para o local. Lá, encontrou um grupo de 50 pessoas, a maioria mulheres e crianças, que discutiam com um policial. Eram parentes e amigos dos quatro jovens que se encontravam encurralados pela polícia em um beco, de onde não podiam ser vistos. A equipe, imediatamente, começou a mediar o conflito, conversando com o policial que estava de guarda, impedindo a entrada das pessoas no beco. “Comecei a conversar com o policial. E fiquei impressionada. Ele estava tão nervoso que não conseguia articular as palavras. Em determinado momento, ele disse: ‘a gente tá aqui desde as 4 horas da madrugada, de pé, sem comer, sem ir no banheiro, e essa gente vem aqui pra fazer tumulto. Como é que você quer que eu tenha calma?’”.

O clima continuava tenso, mas sob controle. A equipe se posicionou entre o policial e o grupo de moradores, fazendo um minicordão humano para evitar que os ânimos ficassem mais acirrados e buscando uma solução. Enquanto dialogava com o policial, um corpo, envolto em um cobertor cinza, foi trazido por cerca de 10 policiais. Ninguém teve dúvidas: um dos jovens morrera e seu corpo estava sendo levado para o Caveirão. As famílias presentes se desesperaram, começaram os gritos. Uma jovem furou o cordão humano: precisava saber a identidade do morto. Foi o estopim. Um policial apontou seu fuzil para o grupo e um segundo disparou tiros a esmo. O grupo se dispersou.

Os outros jovens encurralados saíram com vida do beco. De Belém, como era conhecido o jovem que foi morto, não tinha parentes na comunidade, na qual morava há pouco mais de um ano. Pouco se sabe sobre rapaz, inclusive sobre sua morte. O que se sabe, no entanto, causa indignação: seu corpo foi retirado da cena de seu assassinato antes que a perícia pudesse ser feita e sua morte não foi registrada na Delegacia de Homicídios.

A Maré de Direitos vai entrar com ações para garantir que arbitrariedades e brutalidades, como invasão de domicílios, homicídios e armamentos letais não possam ser usados indiscriminadamente contra a população. “Essa ação deixou uma certeza: precisamos urgentemente refletir e discutir sobre as condições psicológicas, os danos à sanidade mental dos policiais provocados pelas condições a que são submetidos nessas ações; sobre a falta de perícia nos casos de homicídios executados nessas operações; e sobre o uso de armas letais contra a população. O interesse da Maré de Direitos é pela vida e pela legalidade”, afirmou Lidiane, coordenadora do Eixo de Segurança Pública e Acesso à Justiça, ao fim de mais um dia bastante difícil para todos os mareenses.

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Moradores das favelas da Maré, Penha e Alemão vivem mais um dia de medo e desrespeito aos seus direitos fundamentais

Em 20/08/2018

Moradores das favelas da Maré, Penha e Alemão vivem mais um dia de medo e desrespeito aos seus direitos fundamentais

Na região, moram mais de 550 mil pessoas, entre elas, milhares de crianças que não puderam ir à escola e moradores que perderam o direito de ir e vir, tiveram suas casas invadidas e seus bens danificados, além de serem submetidos a revistas constrangedoras

Seis mortos, entre eles, um militar do Exército, 10 suspeitos apreendidos e 550 mil pessoas de 26 favelas em pânico. Esses são os números, até momento, de mais uma operação deflagrada pelas Forças de Segurança do Rio de Janeiro. A ação teve início na madrugada desta segunda-feira, 20, nos Conjuntos de favelas da Maré, do Alemão e da Penha. A equipe da Redes da Maré recebeu várias denúncias de violação de direitos dos moradores, entre elas, duas invasões de domicílio e uma depredação de veículo feita pelos policiais. Além disso, milhares de crianças (só na Maré são 16 mil) deixaram de, mais uma vez, irem à escola, e moradores reviveram o constrangimento de serem revistados indiscriminadamente, sob o argumento de poderem estar levando para fora das favelas armas e drogas, e tiveram sequestrado seu direito de ir e vir.

A ação, integrada por mais 4,2 mil homens, entre militares do Exército e da Marinha, policiais militares e civis, utiliza armamento pesado, veículos blindados e helicópteros. Na Maré, militares das Forças Armadas fazem cerco às comunidades de Nova Holanda, Parque União, Rubens Vaz e Parque Maré, enquanto PMs do 220 Batalhão, do Batalhão de Choque e do Batalhão de Operações Especiais (Bope) tomam às ruas das favelas. Na Nova Holanda, nas últimas horas, houve um recrudescimento da violência policial. Além do intenso tiroteio, bombas são lançadas contra a população. A Redes da Maré recebeu a denúncia que quatro jovens foram torturados: um foi morto (e levado pelo Caveirão). Os outros três foram liberados.

No Alemão e na Penha, famílias são impedidas de se aproximarem de seus mortos

Nos Conjuntos de Favelas do Alemão e da Penha as coisas também estão bastante ruins. De acordo com a página do Facebook do Coletivo Papo Reto, “várias moradoras do Complexo do Alemão e do Complexo da Penha procuraram integrantes de nossa equipe para informar que há corpos na mata que liga as duas favelas, mas que a Polícia Civil e o Exército não estão deixando familiares se aproximarem”. Em sua nota, o Coletivo exige posicionamento de entidades como a Anistia Internacional, a Comissão dos Direitos Humanos e a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, entre outras.

A equipe do Maré de Direitos continua acompanhando o desenrolar da operação e de plantão para atender às denúncias de violações de direitos. Se necessário, não deixe de entrar em contato pelos telefones 3105-5531 ou pelo Whatsapp 99924-6462.

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Primeira edição de “Mestres da Periferia” reúne centenas de pessoas

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Prêmio, idealizado pelo Instituto Maria e João Aleixo, reconhece trajetórias e saberes voltados para as periferias

Por Maria Morganti em 15/08/2018

O Galpão Bela Maré reuniu centenas de pessoas para assistir à cerimônia da primeira edição do prêmio “Mestre das Periferias”, realizado pelo Instituto Maria e João Aleixo (IMJA), na última quarta-feira, 8 de agosto. O evento premiou, com o título de mestre e uma bolsa de R$ 30 mil, Conceição Evaristo, Ailton Krenak, Antonio Nêgo Bispo e, in memorian, Marielle Franco, ex-vereadora assassinada no último dia 14 de março.
“Foi uma noite muito emocionante”, afirmou Dalcio Marinho, geógrafo da ONG Redes da Maré. Após a premiação, comandada pela jornalista do Instituto Maria e João Aleixo, Ivana Dorali, a noite continuou com música black, com a DJ Thamy Reis. Criado em 2016, o IMJA é um centro de estudos dedicado à formação, à criação e à difusão de conhecimentos sobre espaços populares.

Sobre os Mestre das Periferias:

Ailton Krenak é líder indígena, cidadão Krenak, jornalista, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora e doutor Honoris Causa.

Conceição Evaristo é escritora internacionalmente premiada, mestra em Literatura pela PUC-RIO e doutora em Literatura Comparada pela UFF. Autora de seis livros, criou uma nova forma de escrever na Literatura a partir da #escrevivência, onde suas experiências de vida enquanto mulher negra são bases para suas obras. Disputa a cadeira de nº 7 na Academia Brasileira de Letras.

Antonio Bispo é liderança quilombola ou, como prefere ser chamado, um ‘relator dos saberes’, lavrador, escritor, intelectual, ativista, professor convidado em universidades e documentarista.

Marielle Franco (in memorian), socióloga e mestra em Administração pela UFF. Cria da Maré, onde passou sua infância e juventude e iniciou sua militância em defesa da Favela. Foi eleita vereadora do Rio de Janeiro em 2016, sendo uma das mais votadas. Foi assassinada em 14 de março de 2018 e ainda não há respostas sobre o crime.

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Aquele velho conhecido, o racismo

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Maré de Notícias #91 – 01/08/2018

Apesar de o aumento do número de brasileiros que se autodeclaram negros, o racismo ainda é uma ferida aberta.

Jorge Melo

O que faz duas mulheres, entre 60 e 70 anos, discriminarem duas jovens negras, em regiões diferentes da cidade? Responder não é fácil. No Brasil, ninguém se assume racista. Quando se discute o racismo, tem sempre aquele que diz que isso é um absurdo, que é história de quem quer dividir o País, que todos são iguais perante a lei, que a reclamação é mimimi. Olhando em volta, para a desigualdade imoral que nos afronta, é possível entender por que isso acontece. Apesar de inegáveis avanços, leis inclusivas e uma gradual mudança no comportamento do brasileiro (entre 2012 e 2016, o número de brasileiros que se autodeclaram pretos aumentou 14,9%), o racismo ainda é uma ferida aberta.

O suspeito de sempre

Em março deste ano, Thais de Jesus Custódio, saía, com uma amiga, de um baile, na Penha. Era uma manhã de domingo. Aos 28 anos, a economista, formada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), vive e se diverte, preferencialmente, no subúrbio. Não quer distanciar-se das suas raízes, fincadas na Maré. Thais faz parte de um grupo restrito. Segundo dados do IBGE apenas 10,4 % das mulheres negras completam o Ensino Superior. O percentual de mulheres brancas com Ensino Superior completo é de 23,5%.

Thaís e a amiga resolveram comer numa lanchonete, na estação de trens. Se interessou por um pastel, exposto na vitrine, mas ficou em dúvida se estava quente e dirigiu-se a uma senhora, que comia um igual. Qual não foi a surpresa de Thais quando a mulher, que aparentava uns 60 anos, começou a gritar, acusando-a de tentar roubá-la. Um homem mais jovem, que se apresentou como filho dela disse: “o problema não é com você, ela é racista”. Mesmo assim ele apoiou a mãe na falsa denúncia.

A omissão policial

As poucas pessoas que estavam na lanchonete, aos olhos de uma Thaís confusa e humilhada, pareciam concordar com as acusações descabidas. Teve medo de até ser linchada. Indignada, Thais lembrou-se que existia uma cabine da PM, na rua em frente, a uns 300 metros da estação. Chorando, caminhou rapidamente. Na cabine, o policial militar dormia. E ainda sonolento disse que nada podia fazer, porque Thaís não tinha nem o nome nem o endereço da agressora. Thaís protestou, mas o policial manteve a mesma postura distante e desinteressada. Revoltada, Thaís foi para casa aos prantos, se sentindo impotente. Depois de conversar com algumas amigas, decidiu fazer um Boletim de Ocorrência. E foi à Delegacia da Penha.

A puxada de orelha

No ano passado, o Brasil foi advertido no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, Suíça, no sentido de intensificar o combate à discriminação contra a população negra. E não se trata de proteção a uma minoria. De acordo com a PNAD – Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios, do IBGE, 104,2 milhões de brasileiros são pretos e pardos – o que corresponde a mais da metade da população do País, estimada em 205 milhões.  O Conselho pediu providências ao Governo brasileiro para a redução dos homicídios de jovens negros, intolerância religiosa, garantia de acesso à educação de qualidade, proteção e garantias de direitos para mulheres negras e mais acesso a políticas de redução da pobreza e a programas sociais.

Preconceito fora de controle

Pâmela Cristina de Carvalho tem 25 anos. Formada em História pela – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), faz mestrado em Educação, também na UFRJ. Pertence a um grupo ainda mais restrito do que Thaís. O mestrado é o início da carreira acadêmica, que se completa com o doutorado. No Brasil, existem 219 doutoras pretas e professoras em cursos de pós-graduação, segundo o Censo da Educação Superior de 2016. Ou seja, apenas 0,4% do corpo docente na pós-graduação em todo o País. Já o corpo discente (estudantes) da pós-graduação concentra um visível baixo número de alunas pretas. Mas ninguém sabe quantas são. Segundo a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), ligada ao Ministério da Educação, as informações sobre raça foram instituídas em 2016, e 2017 foi o primeiro ano em que os estudantes tiveram de preencher o campo “raça” nos formulários. Os dados estão em fase de consolidação e ainda não foram divulgados.

O “jeitão” esquisito

Pâmela conta que seguia para uma aula no Campus da Praia Vermelha, quando foi abordada por uma mulher aparentando entre 60 e 70 anos, que demonstrando indignação disse, com ofensas, que ela e seu cabelo a incomodavam. Pâmela reagiu, denunciando o racismo. E foi em busca de ajuda. Encontrou um PM, e com ele localizou a injuriante na entrada do Shopping Rio Sul. O PM alertou a mulher sobre a gravidade do gesto e a pressionou a pedir desculpas. Tentando se defender e dar um ar de naturalidade às ofensas, disse: “mas essas meninas ficam usando esses cabelos pro alto, assusta as pessoas.” Pâmela é irônica ao referir-se ao incidente: “as senhorinhas de Botafogo-Urca estão passando mal com o meu ‘cabelo estranho’, com esse ‘negócio pro alto’, com esse ‘jeitão esquisito’. Os senhores-garotões do Rio Sul estão espumando de ódio com a presença de uma mulher que não corresponde ao estereótipo de feminilidade”.

Depois da intervenção conciliatória do policial e muita resistência, a mulher, de má vontade, concordou em pedir desculpas.  Mas Pâmela não ficou satisfeita e resolveu registrar a ocorrência na Delegacia de Botafogo.

Tratamentos diferentes

Na Delegacia da Penha, Thaís se incomodou com o tom de algumas perguntas e comentários do inspetor, encarregado de tomar o depoimento. Segundo Thaís, ele fez vários questionamentos em relação ao comportamento dela e ao local em que estava, antes do ocorrido: um baile funk. Também fez observações sobre as roupas que usava e chegou a dizer que muitas pessoas de classe média eram cleptomaníacas, ou seja, roubam mesmo sem necessidade.  

Já Pâmela considerou correto o atendimento na Delegacia de Botafogo. Segundo ela, foi ouvida com atenção e informada de que o PM, que fez o primeiro atendimento, deveria ter tomado as medidas para dar início à responsabilização da mulher por injúria racial e, não, propor um pedido de desculpas. A polícia está agora tentando localizar as injuriantes.

Thais e Pâmela terão de ter muita persistência para que as denúncias sigam em frente. Desde 1988, apenas 244 processos de racismo e injúria racial foram julgados no Estado do Rio de Janeiro. Uma média de oito por ano.  E entre os casos julgados, quase 40% foram considerados improcedentes pela Justiça na área cível. Na área criminal, os réus foram absolvidos em 24% dos casos. Essa situação se repete em outros Estados do País.

A injúria racial é apenas um dos tipos de agressão que sofrem mulheres negras como Thais e Pâmela. Segundo dados do IBGE, as mulheres negras estão na base da pirâmide salarial. Elas ganham, em média, 40% menos que um homem branco na mesma função. Mulheres negras são as principais vítimas da violência no Brasil. Segundo o Mapa da Violência, realizado anualmente pelo IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, enquanto a mortalidade de não negras (brancas, amarelas e indígenas) caiu 7,4% entre 2005 e 2015, entre as mulheres negras o índice cresceu 22%. 

Racismo é crime

A legislação brasileira determina a pena de reclusão a quem tenha cometido atos de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Há quase 30 anos foi criada a Lei 7.716, que tornou inafiançável e imprescritível o crime de racismo, também presente na Constituição de 1988.

Segundo o antropólogo Kabengele Mungana, que nasceu no Congo, na África, e é um estudioso da questão racial no Brasil, “ecoa dentro de muitos brasileiros uma voz muito forte que grita: ‘não somos racistas, os racistas são os outros’. Essa voz forte e poderosa e? o que eu chamo de inércia do mito de democracia racial brasileira. Como todos os mitos, ela funciona como uma crença, uma verdadeira realidade, uma ordem. Por isso, e? difícil arrancar do brasileiro a confissão de que ele também e? racista”. Mungana é um dos 120 professores negros da Universidade de São Paulo (USP), que tem um quadro de 6 mil docentes.

No Rio de Janeiro as denúncias de racismo podem ser encaminhadas pelo telefone: (21)3399-1300.