Capoeira raiz de luta e cultura na Maré

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Arte é mistura de ritmo, canto e resistência contra a opressão e preservação da história

Edição #163 – Jornal Impresso do Maré de Notícias

A Capoeira é uma manifestação cultural afro-brasileira e estima-se que seja praticada por mais de 6 milhões de pessoas em todo o mundo, mas, nem sempre foi assim. Criada por africanos escravizados e seus descendentes, a capoeira foi estigmatizada e até 1937 era proibida no Brasil. 

 Foi necessário muita luta e ginga para que a capoeira fosse considerada cultura e reconhecida, em 2014, como patrimônio cultural imaterial da humanidade, pela UNESCO.

África-Brasil

A capoeira chega ao Brasil por meio do ritual do engolo (ngolo), realizado por povos do sul de Angola, na África. Mais de meio milhão de homens e mulheres das regiões do Congo-Angola foram traficados para o Brasil, trazendo junto com eles a própria cultura.

A capoeira surge como uma das formas de lutar e resistir, mantendo a cultura viva. Ela foi “disfarçada” de dança de roda, para não chamar atenção: é por isso que, no centro, duas pessoas disputam e dançam, ao som de palmas e de instrumentos, como berimbau, reco-reco, agogô, atabaque, chocalho e pandeiro.

Capoeira Maré

Dia 3 de agosto é comemorado o Dia do Capoeirista e, recentemente, um capoeirista mareense foi destaque em um reality show nacional. O professor Lucas Henrique mostrou para todo o Brasil que a capoeira ocupa um importante espaço na vida dele: 

Um dos capoeiristas pioneiros é Vicente Ferreira, o Mestre Pastinha, nascido em 1889, um ano depois da abolição de 1888. O mestre era defensor da preservação da Capoeira Angola, conhecida como capoeira mãe, pelo resgate de movimentos tradicionais, executados perto do solo e com uma mistura de jogo, canto, toque e história. Ele considerava a capoeira como a luta dos excluídos e explorados.

Na Maré, o defensor dessa linha é Manoel Lopes, o Mestre Manoel, de 62 anos. Em 1994, começou a trabalhar no território e fundou o Grupo Capoeira Ypiranga de Pastinha, na ocupação Portelinha, no Morro do Timbau. Ele conta que seu trabalho é focado na arte, educação e conscientização. 

“Quando cheguei na Maré as mulheres não queriam cabelos crespos e nem serem identificadas como negras, mas sim mulatas, sem saber o verdadeiro significado dessa palavra”, destaca. Mestre Manoel defende que os alunos dele sejam cidadãos políticos e não apenas lutadores. 

“Tem que ser mandingueiro, tendo jogo de cintura para sobreviver. A capoeira precisa resgatar que o povo preto foi escravizado e teve uma falsa liberdade, assinada a lápis. Os meus alunos precisam compreender que há uma ausência de políticas públicas, que tudo foi negado aos afrodescendentes e povos originários. Hoje, não somos escravos do colonizador, mas sim do sistema, que por meio de operações policiais na favela, tenta o extermínio do povo preto. A verdadeira história do Brasil foi apagada, de que a miscigenação foi forçada”, enfatiza.

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Expressão da liberdade

Há 50 anos morria Manoel dos Reis Machado, Mestre Bimba. Ele fundou a capoeira regional, no final da década de 1920, e foi o primeiro capoeirista a dar aulas em local fechado. À época, um divisor de águas, pois ao sair da rua, diminuíram as perseguições policiais. Em 1953, Mestre Bimba promoveu uma apresentação para o então presidente Getúlio Vargas.

Admirador do Mestre Bimba, Iranildo Batista, o Mestre Yrann, de 64 anos, da Associação de Capoeira Kapoart, há 50 anos pratica a arte. Ele lembra que o primeiro berimbau que teve foi feito com cabo de vassoura e lata de leite e, os treinos, eram na Associação de Moradores do Parque União, com Mestre Silas. 

“Eu era esforçado, pois arrumava tempo entre o estudo e o trabalho. Aprendi que a vida é a maior expressão de liberdade e que a capoeira se compara a ela. Que a palavra capoeira deriva de um vegetal do mesmo nome e da resistência dos negros contra os açoites.” 

O irmão dele, Ivanildo Batista, de 64 anos, o Mestre Mano, começou a prática da capoeira na Bahia e deu continuidade à cultura também no Parque União. “O conhecimento ninguém tira da gente, ano que vem completo 50 anos de capoeira. Um diferencial é que desde de 2019, atuo na Capoeira Viva Para Cristo, onde realizo um trabalho missionário no qual levo o evangelho através da arte”, diz. 

Para todos e todas

Para quem acha que a capoeira é um mundo masculino, está enganado. Maria Cleide, de 56 anos, a Mestre Cleide, do Grupo Terra, de Olaria, é viúva de um dos maiores mestres da cidade do Rio de Janeiro, o Mentirinha. Ela exalta a força da mulher que precisou conquistar o seu espaço. 

“Só há 20 anos que conseguimos aparecer, pois antes era muito complicado, até pegar um berimbau era difícil. Hoje somos muitas”, garante.

Tetracampeão

Um dos capoeiristas mais antigos da Maré é Jorge Roberto, o Mestre Crioulo, de 70 anos. Ele começou na capoeira aos 10 anos, ainda na época das palafitas. 

“Só tinha uma televisão na rua e assisti o filme: O pagador de promessas, onde tinha uma roda de capoeira. Decidi que queria isso para minha vida. Meu pai era contra, pois associava a ser vagabundo, então, tive que aprender lendo o livro Capoeira Sem Mestre”, conta. 

O pai de Crioulo descobriu o que o filho fazia através do jornal, que trazia ele na manchete e na foto, com o título de primeiro campeão brasileiro da modalidade. “Os vizinhos deram parabéns e meu pai acabou aceitando, então, repeti o feito de campeão em 1975, 1978 e 1981. Conheci o mundo através da capoeira, mostrando que o gol é demonstrar que sabemos bater, mas que a arte é não machucar”.

Novas vozes na Capoeira

Apesar de legalizada e premiada, a capoeira e os capoeiristas não deixaram de encontrar dificuldades para manter os grupos. Ainda assim, o que mantém a arte forte e viva nesses muitos séculos, é a renovação das lideranças e dos mestres.

Entre um golpe e outro, além de alunos, já aparece lideranças jovens no meio de saltos. Entre essa juventude se encontram dois irmãos: os mestres Jacaré e Crocodilo. 

Sérgio Inácio, de 36 anos, o Mestre Crocodilo, fundador do Grupo Maré de Bamba, respira o gingado da capoeira há 22 anos, ao lado do irmão, Mestre Jacaré. Ambos vieram da Paraíba para a Maré, e Sérgio confessa que, ao chegar, teve um choque com a cultura carioca. Para aliviar a ansiedade e a saudade, encontrou na capoeira um estilo de vida. 

Ele conta que seu maior encanto é ensinar o que aprendeu com outros mestres. Por isso, já deu aulas em escolas e creches e criou o grupo que, atualmente, ocupa o Museu da Maré. 

“Isso é preservar a cultura! Com respeito, tento repassar o que aprendi”, conclui.

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