Casa das Mulheres da Maré: um novo ciclo para além do Parque União

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Equipamento completou 6 anos de atuação em outubro com diversas frentes de atuação

Por Julia Bruce

No último dia 28 de outubro, a Casa das Mulheres da Maré completou seis anos de um sonho materializado no Parque União, uma das 16 favelas da Maré. A programação contou com uma série de atividades abertas ao público em geral na rua e no prédio, como o atendimento no Salão Maré de Belezas, oficina de gastronomia infantil com alunas do Maré de Sabores, oficina de Trança com ex-aluna do Maré de Belezas, Jogo Maréas, além da Feiras DELAS, que expôs diversos empreendimentos de dez mulheres mareenses que já foram ou são assistidas pelo equipamento. O encerramento foi marcado pelas apresentações da DJ Laís Conti e da cantora Becca Perret.

Daltiva, Mônica, Iraci e Andressa foram as primeiras a chegar. Avó, irmãs e neta, respectivamente, estavam aguardando serem chamadas para fazer tratamento e cortar seus cabelos com as alunas do Maré de Belezas. Todas moram no Parque União, exceto Iraci, que mora na Rubens Vaz, e costumam participar das atividades abertas que a Casa oferece. “Sempre participei dos cursos que são oferecidos aqui, do Maré de Sabores (fui da última turma de 2022 com a professora Michele). Sempre me inscrevo para fazer cabelo, hidratação e escova, e soube das atividades de aniversário pelo WhatsApp”, conta Mônica Linhares, 44, que compartilha com frequência as informações da Casa com sua família e diz, emocionada, que se sente “abraçada” pela receptividade da equipe. Mônica tem vontade de trabalhar na área de Confeitaria e, a partir do Maré de Sabores, surgiu o desejo de abrir o próprio negócio. 

Daltiva, Mônica, Iraci e Andressa após atendimento no Salão Maré de Belezas

Tereza e Paloma compartilham da mesma emoção e vontade de trabalhar de forma mais autônoma, monitora e aluna do Maré de Belezas, respectivamente. Tereza também foi da última turma do Maré de Belezas (fevereiro de 2022) e hoje atua como monitora nas aulas do projeto, apoiando as novas alunas e vivenciando a rotina de um salão de beleza. “Somos do Ceará e nos conhecemos aqui no Rio. Fiquei grávida, perdi o emprego, mas o Maré de Belezas apareceu e hoje estou aqui. Temos vontade de fazer um empreendimento de belezas, nosso projeto é esse. Estamos esperando mais experiência para poder comprar os equipamentos e começar!”, explica Tereza, que também se sente muito acolhida e complementa que, “quando as alunas terminam o curso não são esquecidas, mas acionadas de alguma forma”. 

Paloma, 29, moradora da Baixa do Sapateiro, é aluna do projeto junto com duas primas: “somos conhecidas como as primas. Já trabalhei com isso de forma autônoma em casa (fazia corte, escova, prancha). Como minha família é grande, uma pegava no cabelo da outra. Depois que eu fui mãe da minha primeira filha (4 anos) e agora da segunda (2), fiquei focada nelas, mas depois que vim pra cá nossa mente muda, passamos a ter um outro olhar, temos visão dos próprios negócios, saímos daquele mundo materno e isso me fez muito bem”, relata Paloma.

A Feira DELAS, que promoveu os trabalhos de mulheres empreendedoras, recebeu o Filó, criado em 2014 por Edna Patricio, 53, com a proposta de confeccionar e vender bolsas, mochilas e necessaires, sobretudo para o público infantil. Edna é moradora da favela Rubens Vaz, onde nasceu e cresceu, trabalha pela Economia Solidária fazendo circuitos em várias praças do Rio de Janeiro e participa da Feira DELAS desde 2019, no Festival WOW. A empreendedora também é assistida pela Casa das Mulheres da Maré e recebe atendimento psicológico há 3 meses desde que perdeu o marido. Sua filha já participou do Maré de Sabores. “As terapias têm me ajudado bastante a aprender a lidar com o luto que não é fácil, estamos aprendendo a viver com isso”, diz.

Edna Patrício com seu empreendimento Filó, na Feira DELAS, no dia do aniversário de 6 anos da Casa das Mulheres

O propósito de acolher 

O trabalho da Casa das Mulheres da Maré é ancorado no acolhimento e no fortalecimento do protagonismo das mulheres do território. A coordenadora da Casa das Mulheres da Maré, Mariana Aleixo, destaca que o maior desafio do espaço é a demanda de se pensar em um projeto mutável. “Começamos com o Maré de Sabores, a partir da demanda de qualificação profissional mais as oficinas de Gênero e Sociedade, mas vamos percebendo que formar mulheres é pensar nelas de uma forma mais integral. As outras demandas que fazem parte da vida delas precisam ser acolhidas e como podemos dar esse apoio para os diferentes desejos e escolhas?”. 

Além da qualificação profissional e geração de renda com o Maré de Belezas e o Maré de Sabores, a Casa oferece atendimento psicossocial e sociojurídico em parceria com o projeto Maré de Direitos, a Frente Direitos Sexuais e Reprodutivos, alfabetização para mulheres adultas, promoção de arte e cultura, além de pesquisa e produção de conhecimento. “Então, é um processo de politização dessas mulheres que vão demandando cada vez mais ações e projetos integrais da Casa e a resposta que a gente tem acaba sendo rápida, por conta desse histórico da Redes da Maré de mobilização. Hoje, o nosso espaço acaba sendo pequeno pelas demandas de projeto que temos”, afirma Mariana Aleixo. 

De janeiro a setembro de 2022, mais de 1.300 mulheres se inscreveram nos cursos de qualificação, foram realizados 500 atendimentos psicossociais e o equipamento foi acessado por mais de nove mil pessoas. 100% das mulheres atendidas são mareenses, 40% tem ensino fundamental completo ou incompleto, 28% se declara desempregada no momento, 7% se declara do lar e 34% não possui renda fixa. A equipe da Casa é formada por 32 mulheres: 40% se declara parda, 37% preta e 21% LBT (lésbica, bissexual e transexual).

Números em destaque também marcam o Maré de Sabores (2010), um dos primeiros projetos que materializaram o desejo da Redes de pensar ações com esse recorte de gênero. Já são mais de 80 mulheres assistentes de cozinha, 40 merendeiras, 52 encaminhadas para seleção de trabalho ou apoiadas por mentorias para seus negócios, além de 1.000 qualificadas na área. 

Teremos mais de 1.800 mulheres alcançadas somente em 2022. Começamos lá atrás com o Maré de Sabores com uma turma de 20 mulheres e a gente chegar nesse lugar mostra como a força e organização da Redes consegue responder essas demandas e como precisamos crescer para dar continuidade nisso” – Mariana Aleixo, coordenadora da Casa das Mulheres da Maré

Da esquerda para a direita: Myllenne Fortunato, assistente de coordenação; Daiana Azevedo, instrutora do Maré de Belezas; Vânia, ex-aluna do Maré de Belezas que realizou uma oficina de trança no dia do evento; e Mariana Aleixo.

O primeiro passo para a construção da Casa

A atual coordenadora do espaço começou na Redes da Maré como oficineira  de gastronomia do Programa Criança Petrobrás, no Ciep Operário Vicente Mariano, na favela da Baixa do Sapateiro. O programa do eixo Educação da Redes viabilizava atividades complementares nas escolas públicas da Maré para as crianças permanecerem por mais tempo no ambiente escolar. Foi a partir da parceria das escolas e dos pais que as atividades eram desenvolvidas e a gastronomia foi uma das ações propostas pelas mães. “Quando o Maré de Sabores surge nesse sentido da formação profissional, era fundamental que a gente pudesse focar nas mulheres, porque com a autonomia financeira delas e melhor qualidade de vida a partir de uma qualificação profissional, a gente conseguiria ter um outro lugar das mulheres pensando nessas lutas históricas, que hoje é a produção da autonomia, para poderem pautar as próprias famílias e fazer suas escolhas dentro das realidades do que é ser uma mulher de favela”, explica Mariana Aleixo.

A atual instrutora do Maré de Sabores, Adriana Moreno, foi da última turma do Ciep  Operário Vicente Mariano e também completou seis anos de Casa das Mulheres. Ela nunca teve um empreendimento e, após a formatura no Maré de Sabores, Mariana Aleixo a convidou para trabalhar em um evento e desde aquela época nunca mais saiu. Adriana entrou como tecedora da Redes da Marés e foi Assistente de Cozinha do Buffet Maré de Sabores por três anos. Ela também atuava na parte de atendimento e comunicação com o público. Agora, Adriana está como instrutora dos cursos de gastronomia e de merendeiras, onde costuma passar seus aprendizados e até experiências compartilhadas pela mãe por meio da cozinha baiana, sua origem. “No começo, eu só vinha aqui trabalhar para ganhar dinheiro porque precisava, meu compromisso era esse, mas fui começando a vir para reuniões, palestras, oficinas de gênero e fui vendo que não era só um trabalho. Hoje, o Maré de Sabores significa muita coisa na vida”, conta Adriana.

Oficina de Gastronomia Infantil com ex-aluna do Maré de Sabores, Elma Aisha

O acolhimento com a comunidade

O cuidado com a comunidade trouxe um novo significado para a atuação da Eliane Silva, nascida no Parque União e moradora há três anos do Piscinão de Ramos. Ela conheceu a Casa através do curso Preparatório para o Ensino Médio da Redes que sua filha fez em 2017. Naquela época, ela costumava ir ao prédio central, participava de atividades abertas, comenta que “gostava de estar lá”, mas estava em um momento difícil, pois tinha perdido seus pais e ficou desempregada por ter cuidado deles. Ao conhecer o curso de Assistente de Cabeleireiro na Casa das Mulheres, ela começou a estudar e, pelo seu empenho e trajetória, foi chamada para trabalhar na recepção da Casa em 2018. “Eu não fico apenas no atendimento: dou apoio à coordenação, monto planilhas (aprendi muito pelo curso Ferramentas Digitais do projeto Conectando Mulheres, do eixo Educação). Faço desde o atendimento ao acolhimento. Quando as mulheres chegam aqui já vêm com uma demanda, encaminhamos para a equipe de assistência social, mas às vezes só querem conversar”, observa Eliane, que aprecia sobre como tem sido uma pessoa mais feliz em estar contribuindo com a sua comunidade.

Eliane e outras mulheres da Casa também fizeram parte da campanha ‘Maré diz NÃO ao coronavírus’, a partir de 2020. Toda a equipe pausou as atividades de rotina para construir coletivamente a frente de segurança alimentar. O projeto Maré de Sabores iniciou uma distribuição de quentinhas para as famílias em vulnerabilidade social e pessoas em situação de rua. Nesse período, foram entregues 120 mil quentinhas. “Ficamos nessa distribuição, saímos do nosso cotidiano. Ajudamos as meninas na produção das quentinhas, eu ficava fazendo os sanduíches, lavando louça e ajudava na distribuição, a gente se virou aqui. Na época, eu peguei covid-19 duas vezes em menos de quatro meses, perdi duas primas que eram como irmãs, fiquei muito abatida, mas encontrei forças.  Primeiro, pela minha fé em Deus, pela ajuda psicológica da equipe da Casa, além da família”, descreve a tecedora Eliane. Atualmente, são distribuídas 200 quentinhas uma vez por mês para famílias em vulnerabilidade social como parte das oficinas de gastronomia do Maré de Sabores.

Foto: Douglas Lopes. Frente de Segurança Alimentar com a produção de quentinhas diárias no projeto Maré de Sabores, que existe desde o início da pandemia (2020)

A atuação no campo dos direitos sexuais e reprodutivos

Uma outra frente da Casa das Mulheres da Maré é a de Direitos Sexuais e Reprodutivos, considerando a perspectiva da Justiça Reprodutiva, cujos direitos sexuais e reprodutivos são ligados à justiça social. As ações se dividem no canal de atendimento pelo WhatsApp “Maréas” – que acontecem de segunda a sexta, das 13h às 17h -, em palestras sobre saúde sexual e reprodutiva, consultas ginecológicas com foco em inserção de dispositivo intrauterino (DIU), oficinas e na distribuição de materiais de manejo menstrual, como absorventes descartáveis e coletores menstruais.

No aniversário de 6 anos da Casa, a programação contou com o “Jogo Maréas”, uma dinâmica de jogo colaborativo de cartas e adivinhação para debater de forma lúdica questões como pobreza menstrual, identidade de gênero, racismo, aborto, entre outras. Dez mulheres participaram da atividade proposta.

A articuladora da Casa das Mulheres, Andreza Dionísio, 23, e que está à frente desse movimento, confirma que até hoje já chegaram em média 140 mensagens no canal de atendimento, maioria sobre a inserção de DIU e consultas ginecológicas. “Isso fala muito dessa frente de direitos sexuais e reprodutivos que surgiu a partir de uma demanda do território. Também já chegaram casos de violência e trabalhamos em conjunto com a equipe da Casa e com o projeto Maré de Direitos. A usuária é acompanhada pela equipe psicossocial da Casa e pelo serviço sociojurídico do projeto do eixo de Segurança Pública e Acesso à Justiça. Também recebemos dúvidas sobre os cursos”, avalia.

Mural produzido na rua da Casa das Mulheres (R. da Paz, 42 – Parque União) sobre o canal de atendimento “Maréas”, pela artista Amora Moreira, cria da mesma favela

Algumas das novidades da Frente para os próximos meses é que as consultas ginecológicas com foco em inserção de DIU voltarão a ser marcadas nas clínicas das famílias do território. Em 2021, foi a atividade que trouxe mais mulheres para a Casa, alcançando 1.038. Até o final do ano, também serão realizadas palestras sobre saúde sexual e reprodutiva em escolas municipais da Maré. Das mulheres que não preencheram os dados nos formulários para as últimas palestras, a equipe da Casa fez uma busca ativa desse grupo, coletou dados e produzirá uma pesquisa com informações sobre o acesso à material de manejo menstrual, sobre mulheres que abortaram ou não, por que muitas mareenses têm buscado métodos contraceptivos de longa duração, sobre a renda delas, entre outras questões.

Até este ano, já foram realizadas 206 consultas ginecológicas, 39 oficinas, distribuição de mais de 6.570 absorventes descartáveis e 400 coletores menstruais.

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