Catador, com muita honra

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O garimpo que transforma lixo em materiais recicláveis

Maré de Notícias #107 – Dezembro de 2019

Hélio Euclides

O lixo é um grave problema no mundo moderno. Enquanto a natureza trabalha com perfeição transformando tudo o que não é mais utilizado em algo que pode ser útil, o ser humano, cada vez mais, produz lixo, que vai para aterros ou lixões e só polui o meio ambiente. Se aprendesse com a natureza, saberia que resíduo pode ser transformado em nova matéria-prima para retornar ao ciclo produtivo. Enquanto a humanidade descobre, aos poucos, essa máxima da natureza, por necessidade e/ou consciência, surge um personagem: o catador, trabalhador fundamental nesse círculo de reciclagem.

 No programa “Lixo & Cidadania”, criado em 1998 por iniciativa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), os catadores são reconhecidos como verdadeiros agentes ambientais. Eles são responsáveis por coletar 90% de todo o material que as indústrias de reciclagem operam no Brasil. Permitem, por exemplo, que o País esteja no primeiro lugar do ranking mundial de reciclagem de latas de alumínio.

Sergio Ricardo, ambientalista, lembra que o Brasil tem uma política nacional de resíduos sólidos, pela Lei 12.305, de 2010, que estabelece o papel importante para as cooperativas de catadores na gestão dos resíduos sólidos. “Uma pena que o Brasil continue enterrando toneladas de resíduos, todos os dias, nos aterros sanitários e lixões. O País não desenvolveu uma economia de reciclagem; o resultado é que os catadores estão empobrecidos, trabalhando em situação muito precária”, conta.

A Lei a que Sergio se refere menciona, no parágrafo 4º, o incentivo à criação e ao desenvolvimento de cooperativas ou de outras formas de associação de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis. Já no Capítulo V, artigo 42, diz que o Poder Público pode instituir medidas indutoras e linhas de financiamento para atender, prioritariamente, à iniciativa de implantação de infraestrutura física e aquisição de equipamentos para cooperativas ou outras formas de associação de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis formadas por pessoas físicas de baixa renda – o que na prática ainda está muito longe de ser cumprido.

Julia Rossi, bióloga e coordenadora do projeto “Maré Verde”, percebe que os catadores não têm o trabalho valorizado. “Tinha de ter um programa da Prefeitura e do Estado que valorizasse os catadores, pois é uma forma de geração de renda, em especial para a população pobre. Essa atividade traz um bem para todo mundo, que é a reciclagem. Eles sabem distinguir os materiais, levam para as separadoras”, diz.

Catadores são vítimas de preconceito da sociedade e constantemente associados ao problema do lixo, sendo que, na verdade, são a solução. “Uma pena que hoje quem ganha mais dinheiro são as empresas de reciclagem. Esse recurso tinha de ser distribuído de forma mais igual; para reverter isso, teria de ter um processo de valorização”, explica Julia. Ela avalia que o ideal é a implantação de política pública voltada para os resíduos sólidos.

Uma profissão em discussão

Em 2010, foi apresentado um Projeto de Lei que regulamentava a profissão de catadores de materiais recicláveis. O Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis foi contra e reivindicou o veto, feito dois anos depois pelo Governo federal. A justificativa foi que a medida criaria obstáculos para o livre exercício da catação, excluindo a maior parte dos catadores que hoje não possuem todos os documentos exigidos. Outro ponto é que as atividades relacionadas aos catadores já estão definidas na Classificação Brasileira de Ocupações, permitindo o reconhecimento e o registro desses profissionais.

Catador é sinônimo de reciclagem

Felipe Virgens: para o catador, regulamentação da profi ssão tornaria mais fácil a prestação do serviço | Foto: Douglas Lopes

Segundo o aplicativo Cataki, que conecta catadores, no Brasil existem 800 mil profissionais. Um deles é Felipe Virgens Pereira, de 25 anos, sendo três deles no “garimpo”, como gosta de mencionar o seu trabalho. O catador, antes, foi ajudante de pedreiro e fazia manutenção de placas de trânsito. Só que uma tragédia mudou sua vida: após a morte da mãe e briga com irmãos, foi morar na rua e, hoje, sobrevive da profissão.

“Tem dia que é da caça e outro do caçador”. Na vida do catador também é assim. Felipe comenta que tem dia que tira só o da comida, mas em outros a safra é boa. “O lixo é luxo. Já achei 850 reais, duas alianças de ouro, celular e sapateira grande, tudo no lixo. Quando saio da Maré vou para Botafogo, porque lá o povo é compreensivo, dá biscoito e roupas. Certa vez, ganhei um freezer de uma madame. Mas onde gosto de garimpar é no Parque União e Nova Holanda”, conta.

Para os catadores, os melhores produtos para a venda são o alumínio, o cobre e as garrafas PET. “O ferro-velho compra pela metade do preço, são eles que ganham mais dinheiro. Eu entendo que seria bom a regulamentação da profissão, pois ficaria mais fácil para prestar serviço e conseguir se organizar. Hoje, o ideal é participar de uma cooperativa, que ia ajudar muita gente”, sugere. Felipe diz que a concorrência é grande e acredita que a Maré tenha mais de 300 catadores.

“Muitos moradores são parceiros. Uns separam o material e deixam para a gente. Outros são bons de coração e nos convidam para almoçar. Mas também há preconceito e humilhação. Certa vez, tomei tapa por mexer no lixo”, lembra. Ele entende que realiza uma coleta seletiva informal. “Se não fosse a gente e os garis, a cidade seria muito pior”, conclui.

Uma coleta seletiva ainda distante

No site da Prefeitura, a Companhia de Limpeza Urbana (Comlurb) informa que atende a 115 bairros com a coleta seletiva. O material recolhido é destinado a 25 núcleos de cooperativas de catadores credenciados pela Comlurb. Eles recebem gratuitamente materiais, fazem a separação e comercializam os recicláveis com empresas especializadas, gerando emprego e renda para os cooperativados.

A coleta seletiva chega bem próxima à Maré. Ela é feita na Rua Teixeira Ribeiro, do outro lado da Avenida Brasil. Algo que também ocorre com a Rua Gerson Ferreira, deixando a Praia de Ramos fora da coleta. Em Marcílio Dias ainda é pior, pois além da Rua Lobo Junior, só o Mercado São Sebastião, que fica ao lado, recebe a coleta. Em maio de 2017, o Maré de Notíciasperguntou à Coordenadoria de Comunicação Empresarial da Comlurb se havia alguma previsão de um dia se fazer uma coleta seletiva na Maré. A resposta foi positiva, que existiam estudos para a implantação, mas passados dois anos e meio, o projeto não saiu do papel.

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