Alunos permanecem afetados com a falta de conectividade e disposição de aparelhos eletrônicos. Fome também é desafio.
Por Alice Sousa, Andressa Marques, Ester Caetano, Hélio Euclides e Lucas Veloso (*)
Matheus, de 11 anos, é um dos 950 alunos matriculados na Escola Municipal Abá Tapeba, uma unidade indígena para o povo Tapeba na comunidade de Jandaiguaba, em Caucaia, no Ceará. Em 2021, ele começou a cursar o sexto ano. Depois do início da pandemia, Matheus nunca voltou às aulas presenciais. O aparelho celular da mãe tem sido o instrumento de estudos dele, que segue no modelo remoto. A família está sem renda desde o ano passado, quando os pais do menino, uma empregada doméstica e um auxiliar de serviços gerais, perderam o emprego. Agora, eles lutam para colocar na mesa a comida que vinha por meio da merenda.
Ainda que o Brasil tenha reconhecido na Constituição de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, o direito dos povos indígenas a uma educação específica, antes mesmo da pandemia a efetivação desse direito já enfrentava desafios. A crise sanitária e de saúde veio para acentuá-los, tanto nas escolas específicas para indígenas quanto nos outros modelos que recebem essa população. Passados um ano e oito meses dos primeiros casos de covid-19 no país, em meio à retomada das aulas presenciais, em várias partes do país a educação indígena segue esperando infraestrutura e condições de retomar as atividades plenas.
No Ceará, de acordo com a Secretaria de Educação, até o momento, 12 escolas indígenas adotaram o ensino híbrido, alternando tempo presencial na escola e ensino remoto, mediado por material impresso com orientações pedagógicas ou com o uso de algumas tecnologias. Outras sete escolas decidiram, na consulta à comunidade escolar, retornar 100% de forma presencial. Entre as 20 unidades de ensino que estão no formato remoto, alunos que retornaram às atividades escolares por meio da ação da busca ativa na comunidade estão sendo atendidos com aulas presenciais.
No entanto, uma queixa do presidente da Associação dos Professores Indígenas Tapebas (APROINT), John Tapeba, é a de que os aparatos tecnológicos distribuídos pelo estado suprem as demandas dos alunos do ensino médio, mas não chega nos alunos do ensino fundamental, que permanecem afetados com a falta de conectividade e disposição de aparelhos eletrônicos.
Com o avanço da vacinação no estado e o cadastro de adolescentes, o Ministério Público tem pressionado o governo a dar início às aulas de forma híbrida. Para John, no cenário atual, é impossível um retorno seguro. “Tem escola que não tem porta, não tem circulação de ar, só uma pia funcionando, além do principal fator: o vírus. A própria Organização Mundial da Saúde (OMS) já soltou boletins dizendo que o risco de contaminação das populações indígenas com a variante delta é maior do que a população branca/não-indígena”, completa.
A pressão pelo retorno também ocorre no Rio Grande do Sul. No mês de agosto as atividades presenciais começaram a retornar gradativamente nas escolas Mbyá-Guarani e nas escolas Kaingang. A Secretaria de Educação criou um protocolo de retorno às aulas, mas de forma ampla, segundo os professores, não especificou as necessidades das escolas indígenas e suas particularidades.
Segundo Eloir Oliveira, professor na Aldeia Estiva Tekoa Nhumdy, em Viamão, região metropolitana do Rio Grande do Sul, e representante dos professores indígenas Mbyá-Guarani no Sindicato dos Professores, as condições para o regresso são interpretadas como a única opção possível. “Como fazer as aulas online se o Estado não está dando as condições? Como o acesso à internet, a computadores ou notebooks para cada aluno. Então, fica difícil, ou seja, deixam as aldeias sem saída”, questiona o líder indígena.
A preocupação dos profissionais de educação se explica nos dados disponíveis sobre o impacto da pandemia na educação brasileira. Ainda em 2020, um estudo realizado pela União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Itaú Social e Unicef já mostrava que 78,6% das redes de ensino tiveram algum problema de conexão de internet. Outro estudo, de maio deste ano, da Fundação Lemann, BID, Itaú Social e DataFolha, mostra que 8% dos estudantes com indícios de interrupção dos estudos em 2021 tinham como motivo para isso falta de acesso à internet.
De forma própria, a escola onde Eloir ensina realizou uma reunião interna entre pais e direção. Ficou firmado o retorno híbrido, dois dias da semana as aulas seriam presenciais. Mas a adesão não foi a esperada. “As crianças querem estudar, o problema é a questão da prevenção mesmo, a escola ainda não está preparada para isso com os meios adequados em relação à prevenção. Até porque o Estado não dá assistência, eles querem que voltem às aulas mas nas condições mínimas, sem ter de fato uma prevenção bem efetiva”, conclui o professor.
Há um ano, uma pesquisa da Unicef e do Instituto Claro, já havia identificado que o abandono escolar, juntando ensino médio e fundamental, era mais grave entre as populações indígenas brasileiras, sobretudo as que vivem em terras indígenas, com índices que superavam o dobro da média nacional. Os indígenas também estavam entre os grupos mais afetados pela indisponibilidade de atividades escolares no primeiro ano de pandemia no Brasil.
Sem escola, crianças indígenas enfrentam dificuldade para se alimentar
Na casa de Tarciane Pereira, 33, a mãe de Matheus, ela só não viu faltar comida na mesa porque mora próximo à família, também na comunidade de Jandaiguaba, em Caucaia. Na casa dela moram o marido e os dois filhos, Matheus e o irmão mais novo, de 3 anos. Tarciane está sem renda desde o início da pandemia, quando trabalhava como doméstica. O pai de Matheus trabalhava com serviços gerais no início da pandemia e hoje em dia vive de “bicos”.
Outros alunos da escola municipal indígena Abá Tapeba, que começou com uma creche para 135 alunos, também passam pela mesma situação. Conviver com a fome foi o principal desafio trazido pela pandemia, diz a coordenadora pedagógica da escola, Roberta Kelly, 35. “Aqui na comunidade temos uma realidade onde a primeira refeição de algumas crianças é feita na escola. Teve um momento que chegamos a arrecadar alimentos para doações, e aí foi quando o município começou a usar o dinheiro da merenda para fornecer essas cestas básicas para as crianças”, conta.
Atualmente, a escola recebe as cestas básicas da prefeitura todo mês e, semanalmente, uma doação de leite é realizada pelo Mesa Brasil. Os alimentos são repassados para as famílias para tentar amenizar esse impacto na aprendizagem. “São crianças que vivem em uma comunidade de vulnerabilidade, que vem crescendo ao longo dos anos. A fonte de renda da maioria das famílias da comunidade são os benefícios sociais e trabalhos informais, isso não traz uma qualidade de vida”, ressalta Roberta.
Entre as dificuldades, está a de localizar e acompanhar a situação de dificuldade e quem está em situação de fome. “A importância dessas crianças estarem nas escolas é que podemos acompanhar a rotina delas. A gente consegue ajudar de uma melhor forma, mas à distância, às vezes, a família tem vergonha de vir. E aí algumas deixam de ser ajudadas”, explica Roberta, ao lembrar de diversas vezes em que pais de alunos foram até a escola em busca de alimento.
Na Escola Estadual Indígena Bento Pingola, dentro da Terra Indígena Guarita, no Rio Grande do Sul, a professora Sueli Krengre Cândido, 44 anos, também ressalta a importância da merenda escolar. “Com a pandemia a gente não podia chegar perto das crianças então ficou difícil de ajudar”, conta. Sueli também conta que houve uma articulação para marcar dias e horários para buscar o material de estudo e um lanche, entretanto muitas crianças não apareciam.”Hoje retornamos as aulas e ainda há falta de alunos por vários motivos, entre eles os pais que trabalham fora. Outros pedem para que os filhos ajudem nos trabalho, alguns estão nas colheitas e podas, então essas crianças acabam ficando com os avós em outras comunidades.”
Na Escola Estadual Indígena Toldo Campinas, também no Rio Grande do Sul, as aulas presenciais retornaram no início de agosto deste ano. Mas, segundo o professor Lairto Mello, da comunidade Kaingang na Terra Indígena Guarita, a Secretaria de Educação, a Seduc, não deu respaldo para a segurança, apenas foi determinado que voltassem. Mello complementa que existe uma omissão no estado quando se fala sobre “educação indígena”.
“Essa proximidade entre o modo de vida das comunidades e os modelos de educação implantados pelo sistema não tem refletido em uma boa inclusão dos alunos.” Para ele, além da falta de compreensão com a educação indígena, faltam espaços para dedicação dos alunos às atividades e há insuficiente capacitação da classe docente, por parte do estado e governo, na escola Kaingang.
No Rio de Janeiro, até mesmo a agricultura de subsistência indígena está prejudicada na pandemia. “Tem a aldeia Itaipu que não tem terra para plantar. Algo que é problemático, pois a lavoura é um trabalho coletivo. Para o índio quando ele não está forte para fazer a colheita ou comprar comida, ele morre. Não há uma política pública de segurança alimentar”, constata o ambientalista Sergio Ricardo, membro do Conselho Estadual dos Direitos Indígenas (CEDIND-RJ). Segundo ele, há uma crise sanitária nas oito aldeias do Rio, com ausência de saneamento básico. “Foi feito um reservatório de água só este ano na aldeia Itaxim Mirim Guarani Mbyá, em Paraty. Em Itaipu não tem fonte de rio, então eles dependem do vizinho para ligação da bomba”, conta.
Ensino híbrido ainda reproduz dificuldades do modelo remoto
Marlene Angelica Bento, 29 anos, atua como professora há mais de oito. Faz parte da Aldeia São João do Yapura, uma das 18 aldeias da terra índigena Guarita, no noroeste do Rio Grande do Sul e é vice-diretora na Escola Estadual Indígena de Ensino Médio Antônio Caximim. Na escola onde atua, a volta às aulas foi gradual, com a implementação do sistema híbrido. Segundo Marlene, mesmo com esse novo formato, a pandemia foi e continua sendo um dos momentos mais desafiadores da carreira.
Com o retorno parcial, muitos pais não se sentiram seguros de levar seus filhos para a escola, então foi criado a opção de continuar o ensino remoto. “A gente está auxiliando as crianças com atividades remotas por enquanto. Todos salientaram que no momento em que estiverem se sentindo seguros iriam mandar seus filhos.”
Sem apoio especificado da Secretaria de Educação, a professora conta que são várias as dificuldades, para além da pandemia, como falta de transporte público que contemple a escola. “Um transporte de qualidade é fundamental para que esses alunos possam estar fazendo seus estudos dentro do seu do seu local de origem. Isso é muito importante pra nós que somos indígenas.” Procurada, a secretaria afirmou que não há um plano específico de retorno para as escolas indígenas, mas que foram publicadas várias portarias com orientações para as escolas que atendem no modelo híbrido de ensino, desde o ano passado. Em relação às particularidades das escolas indígenas, a Seduc afirmou, em nota, que “mantém um diálogo permanente com as comunidades para que as aulas ocorram de maneira adequada e de acordo com a realidade de cada uma das instituições de ensino”.
A professora Rosani dos Santos, 39, que atua em São Paulo, tem queixa semelhante. “Por mais que tenha uma série de dificuldades entre os alunos, não podemos esquecer de que a população indígena é desassistida em várias esferas públicas, e não é diferente neste momento”, diz. Em São Paulo, são 6.963 indígenas Mby’a, Tupi Guarani, Kaingang, Krenak e Terena que habitam a faixa litorânea, no Vale do Ribeira, no oeste do estado e na região metropolitana de São Paulo. São 1.946 estudantes indígenas no estado, que contam com 52 Escolas Estaduais Indígenas, segundo a Seduc-SP (Secretaria de Educação do Estado de São Paulo), além dos que estudam em escolas não indígenas.
No Rio de Janeiro, não há sequer escola específica para esta população, de acordo com a Secretaria Municipal de Educação. Existem 325 alunos indígenas, distribuídos na rede. Há também uma falta de professores indígenas e de infraestrutura para garantir o acesso dos alunos ás aulas remotas. Na aldeia Araponga, em Paraty, a internet chegou em julho deste ano. Lá, a escola reformada pela Prefeitura só começou a funcionar em setembro. “Hoje só há duas escolas em funcionamento, que é Itaipuaçu e Mata Verde, sendo a segunda em funcionamento num container, ou seja, feita de lata. Além disso, é preciso um estudo baseado na valorização da cultura indígena”, defende o ambientalista Sergio Ricardo, membro do Conselho Estadual dos Direitos Indígenas (CEDIND-RJ).
Além das questões estruturais, os professores contam que eles também precisaram se adaptar à modalidade remota. Segundo Marlene, na aldeia alguns pais completaram apenas as séries iniciais e por isso não conseguem acompanhar os filhos das séries finais com suas atividades remotas. “Nós, como professores, ficamos preocupados em como poder ajudar mais porque nem todos têm acesso a Internet para poder acompanhar e mandar os trabalhos”, conta. “A gente vê que os brancos (não indígenas) tem condições de aprender remotamente, mas os nossos, não.” A TI Guarita tem 16 comunidades com 11 escolas e 11 postos de saúde. “Não é todas as escolas que têm as mesmas condições. Cada comunidade tem a sua demanda e assim temos que seguir.”
Adaptação das tradições
Na Escola Abá, de Caucaia, no Ceará, a educação indígena, foi moldada ao ensino remoto. A semana de festas tradicionais celebradas no Dia do Índio, por exemplo, foi todas virtuais, encenada pelos próprios professores e transmitida aos alunos. Alternativa semelhante aconeceu em São Paulo. Sem apoio do poder público e com a educação como prioridade, nas aldeias, foi preciso pensar algumas iniciativas foram pensadas, segundo informações da Comissão Pró-Índio de São Paulo.
Na aldeia Bananal, Terra Indígena Peruíbe, por exemplo, as professoras montaram apostila com atividades. “A gente montou um grupo de WhatsApp para que as crianças realizassem as atividades nas apostilas e as mães pudessem fotografar e enviar para gente. Isso é feito diariamente e toda dúvida que surge, eles mandam no privado ou podem mandar no grupo mesmo, compartilhando ideias e sugestões e assim a gente vem fazendo”, explica Jaciara de Souza Gomes de Menezes, vice-diretora da E.E.I Aldeia Bananal, no município de Peruíbe.
Na terra indígena Boa Vista, em Ubatuba, houve o reforço do estudo das tradições. “A gente está aproveitando para contar um pouco mais da nossa história, da nossa aldeia mesmo, do nosso povo”, afirma Adilio Wera Ruvixa Paraguassu, vice-diretor da E.E.I Aldeia Boa Vista. “Aprendizagem da nossa cultura não é para resgatar, mas sim para relembrar sempre, para repassar para os outros que estão vindo. Para que os próximos que vierem já saberem que a gente sempre está lutando”, emenda.
“Esta reportagem foi produzida por meio do projeto Sala de Redação, desenvolvida pela Énois, um laboratório de comunicação que trabalha para impulsionar diversidade, representatividade e inclusão no jornalismo brasileiro. Confira as metodologias na Caixa de Ferramentas. As informações foram apuradas de forma colaborativa entre jornalistas dos veículos Maré de Notícias (RJ), Nonada (RS), O Povo (CE), Expresso Na Perifa (SP) e Sul21 (RS).”