Como anda o nosso direito à segurança pública em meio à pandemia?

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Supremo Tribunal Federal suspende operações policiais no Rio durante a pandemia, mas ações seguem violando direitos dos moradores da Maré e outras favelas

Jéssica Pires e Levi Germano

São 15 favelas do Rio de Janeiro que estão sendo acompanhadas Painel Covid-19 nas Favelas, do coletivo Voz das Comunidades, e até o momento (25/06) elas somavam 2.124 pessoas contaminadas e 441 vítimas fatais do Coronavírus. Apesar do número ser alarmante, não representa ainda a realidade, diante das inúmeras questões que o Brasil tem enfrentado em relação à produção e publicação de dados sobre a pandemia. A oitava edição do boletim De Olho no Corona!, produzido, pela Redes da Maré apontou que até esta quinta-feira (25), as 16 favelas da Maré reuniam pelo menos 1.010 casos da doença (297 confirmados e 713 suspeitos) e 104 óbitos. Veja o estudo na íntegra aqui.

Mesmo diante desta crise sanitária sem precedentes, o direito à vida nas favelas do Rio de Janeiro continua sendo negado pela política de Segurança Pública adotado pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro. De acordo com relatório sobre operações policiais no Rio de Janeiro durante a pandemia, da Rede de Observatórios da Segurança, houve mais operações policiais e mais mortes decorrentes delas durante a pandemia, se comparado o mesmo período de 2019.  Houve, também, uma redução no início do isolamento social, em março, porém, o aumento de ações em abril e maio, com vítimas fatais, é indicado pelo relatório e foi notado pelos trágicos episódios de vidas jovens e negras interrompidas. 

No dia 15 de maio, uma operação conjunta do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais), da Polícia Militar e da Desarme (Delegacia Especializada em Armas, Munições e Explosivos) e da Polícia Civil no Complexo do Alemão resultou em 13 mortes. Três dias depois da chacina no Complexo do Alemão, aconteceram duas operações em regiões distintas da região metropolitana do Rio, vitimando dois jovens. Uma operação foi realizada no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo e resultou na morte de João Pedro Mattos Pinho, de 14 anos, alvejado por um tiro de fuzil na barriga. O menino estava na casa da tia com o primo da mesma idade e outros quatro adolescentes quando a casa foi invadida por policiais. Já em Acari, zona norte do Rio, Iago César dos Reis Gonzaga, de 21 anos, foi baleado e sofreu violência policial, segundo familiares. O jovem foi levado pelos policiais e foi encontrado morto no dia seguinte.

Articulação pela vida nas favelas

Diante do histórico de crescimento da letalidade na ação das forças policiais nas favelas, e considerando o cenário de pandemia, organizações da sociedade civil e que trabalham na defesa pelas vidas nas favelas têm provocado o judiciário a rever a legalidade a política de segurança pública adotada pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro. Uma ferramenta utilizada para isso é a ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Trata-se de um tipo de ação judicial, prevista no artigo 102 § 1º da Constituição de 1988, que tem por objetivo impedir que o poder público editar normas e adotar medidas que violem a Constituição. 

Em novembro, a ADPF nº 635, ou ADPF das Favelas (como foi batizada pelas organizações envolvidas), foi proposta ao Supremo Tribunal Federal (STF) por conta da comprovação do aumento de operações policiais violentas e do aumento considerável da letalidade policial nessas ações, que aconteceram em 2019 no Rio de Janeiro. Além disso, os autores da ação apontam o risco provocado pelas operações à segurança dos moradores de favela em meio a atual pandemia do coronavírus, com ameaça ao normal funcionamento de ações humanitárias, como a entrega de cestas básicas. 

A ação, proposta pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) em conjunto com a Defensoria Pública do Estado do Rio e organizações da sociedade civil, discute e propõe à suprema corte que declare inconstitucional a política de segurança pública adotada pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, obrigando o governador, dentre outras medidas requeridas, a elaborar um plano de redução da letalidade nas operações policiais realizadas nas favelas. Este plano deverá prever a proteção à comunidade escolar, participação social (transparência) na sua elaboração, e proibição do uso de helicópteros como plataforma de tiro. Dentre outros detalhes, os autores da ADPF propõem o prazo de 90 dias para que o Governo apresente o plano ao STF.

A participação de organizações sociais na discussão da ADPF 635 é fundamental pois pluraliza a ação, trazendo diferentes pontos de vista, interesses e argumentos da vivência sobre quem acompanha de perto as violações cometidas. Esta participação é possível por meio da figura jurídica do amicus curiae (ou “amigos da corte”), que é uma habilitação concedida à entidades especialistas no tema em julgamento a prestarem informações relevantes para os juízes tomarem uma decisão. Assim, movimentos e organizações sociais podem apresentar seus argumentos para os juízes do STF, nesse caso.

Para ser amigo da corte é necessário ser uma entidade ou instituição e demonstrar a capacidade de levar contribuições relevantes para o julgamento, além de demonstrar sua representatividade para discutir. São amicus curiae na ADPF 635 a Redes da Maré, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, a organização Conectas, a Justiça Global, a Educação Cidadania de Afrodescendentes Carentes (EDUCAFRO), o Movimento Negro Unificado e o ISER (Instituto de Estudos da Religião). Foram também habilitados como amigos da corte o Coletivo Papo Reto, o Movimento Mães de Manguinhos, a Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, o Fala Akari e a Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, que também colaboram na discussão do processo. 

Suspensões de operações policiais durante a pandemia

No dia 5 de junho, o Ministro Edson Fachin, do STF, e relator da ADPF das Favelas (635), proferiu decisão concedendo o pedido de medida cautelar (em caráter provisório e emergencial) para suspender as operações policiais durante a pandemia do coronavírus, no estado do Rio de Janeiro. A decisão é válida até que todos os demais 10 ministros do Supremo se manifestem e divulguem seus votos em um julgamento colegiado (coletivo). O descumprimento dessa decisão estará sujeita à responsabilização civil e criminal. Operações com hipóteses que pudessem ser consideradas absolutamente excepcionais estariam autorizadas, mas elas deverão ser devidamente justificadas por escrito pela autoridade competente, com a comunicação imediata ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro – responsável pelo controle externo da atividade policial. O voto do ministro pode ser lido na íntegra no link

Para a cientista social e especialista em segurança pública Silvia Ramos, a suspensão de operações por parte do STF tem um grande valor simbólico. “A articulação discursiva do governador Wilson Witzel acentuou ainda mais esse problema que a Polícia Militar do Rio já tem há muitos anos do uso excessivo da força letal”. Para a coordenadora do CeSec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania), não é momento de ingenuidade sobre a redução dos números de violência policial por conta da suspensão. Porém, a ação do STF demonstra que é preciso impor condições e limites para atuação da polícia no Rio de Janeiro, que virou uma cultura. 

Brecha para o descumprimento da decisão

Mesmo com a decisão liminar (provisória) da ADPF determinando a  suspensão das operações policiais durante a pandemia do coronavírus, no último dia 17 de junho, uma ação policial foi realizada nas favelas Nova Holanda e Parque Maré. Homens do Batalhão de Polícia de Choque passavam pela avenida Brasil e supostamente foram atingidos por tiros, desencadeando na ação. De acordo com a assessoria de imprensa e e pelo porta-voz da PMERJ, Coronel Mauro Fliess, a mobilização de mais policiais do choque para ação na região foi emergencial e não uma operação policial, o que caracterizaria uma desobediência à decisão do STF. Ações de solidariedade, como a entrega de cestas básicas e itens de higiene e o trabalho de desinfecção das ruas, porém, foram interrompidos e o atendimento na Clínica da Família Jeremias Moraes da Silva, que fica na Nova Holanda, ficou suspenso durante toda a manhã.

Antes dessa determinação judicial, aconteceram três operações policiais na Maré. No dia 27 de março, em Marcílio Dias; no dia 6 de abril, no Parque União e em 29 de abril, no Morro do Timbau, Baixa do Sapateiro e Nova Maré. No dia 6 de abril, as Clínicas da Família Diniz Batista, do Parque União, e Jeremias Moraes da Silva, da Nova Holanda, tiveram o atendimento suspenso. No dia 29, as Clínicas da Família Augusto Boal e Adib Jatene interromperam suas atividades. Violações, como invasão ao patrimônio, também foram relatadas nas primeiras duas operações. 

O De Olho na Maré, projeto da Redes da Maré responsável por acompanhar e sistematizar os impactos das operações no território, identificou que, juntas, essas quatro operações durante a pandemia somaram uma morte, sete feridos, sete invasões a domicílio e três dias com perda parcial ou total dos atendimentos nas unidades de saúde.

Articulação para monitorar e fiscalizar o cumprimento da decisão

Diante de ações policiais como a do dia 17 de junho na Maré, posteriores à data da decisão do STF (05/06), o conjunto dos amigos da corte está se articulando para monitorar operações policiais nas favelas do Rio e pressionar o Ministério Público do Estado a fiscalizar o cumprimento da determinação judicial por parte do Governo fluminense. Na última sexta, 18 de junho, foi enviado ao relator da ADPF 635 uma manifestação sobre o possível descumprimento da decisão por conta da operação policial realizada no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, no dia 12 de junho, cuja motivação era a interrupção de uma festa de aniversário de um traficante da região. No documento, argumenta-se que a operação não se enquadra no que pode ser considerado hipótese de absoluta excepcionalidade e pede que o Ministro Fachin intime o Governo e Ministério Público estaduais a prestarem esclarecimentos sobre a operação e comprovem que respeitaram a ordem judicial da suprema corte.  

Julgamento da medida que proíbe operações policiais

O ministro relator da ADPF 635 Edson Fachin agendou julgamento colegiado (coletivo) da medida cautelar que ele concedeu determinando a proibição de operações policiais durante a pandemia do Coronavírus no Rio de Janeiro. A medida começará a ser julgada no plenário virtual pelos 11 ministros do STF nesta sexta-feira (26), podendo se estender até agosto, por conta do recesso do judiciário.

Sustentação oral popular


Diversas mães e familiares de vítimas da violência de Estado, assim como moradores de favelas se uniram para apresentar, em um vídeo, as razões pelas quais as operações policiais durante a pandemia devem ser barradas pelo Supremo Tribunal Federal. Essa mobilização ficou conhecida como sustentação oral popular, um paralelo à sustentação oral formal de advogados perante os juízes. Participam como depoentes as seguintes pessoas:

  • Rafaela Mattos, mãe de João Pedro Mattos, assassinado no Salgueiro, em São Gonçalo.
  • Vanessa Salles, mãe da Ágatha, assassinada no Alemão
  • Joyce da Silva, filha de Marco da Silva, assassinado no Vidigal.
  • Catarina da Silveira – mãe de Rogério da Silveira
  • Buba Aguiar, Coletivo Fala Akari
  • Bruna Silva, mãe de Marcos Vinícius, assassinado na Maré
  • Gizele Martins, Movimento de Favelas do Rio
  • Ana Paula Oliveira, mãe de Johnathan de Oliveira, assassinado em Manguinhos
  • Laura Ramos, mãe do Lucas Azevedo, assassinado em Costa Barros
  • Anielle Franco, irmã de Marielle Franco
  • Uidson Alves, irmão de Maria Eduarda, assassinada em Acari
  • Irone Santiago, mãe de Vitor Santiago
  • Marcelo Dias, Movimento Negro Unificado
  • Monica Cunha, mãe de Rafael Cunha, assassinado no Riachuelo
  • Patrícia Oliveira, Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência
  • Giselle Florentino, Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial
  • Dalva Correia, mãe de Thiago, assassinado no Borel

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Os suspeitos são os irmãos Domingos Brazão e Chiquinho Brazão, atual conselheiro do Tribunal de Contas do Estado e deputado federal do Rio de Janeiro, respectivamente, e Rivaldo Barbosa, que é delegado e ex-chefe de Polícia Civil do Rio