Griots têm o dom da oralidade e a responsabilidade de eternizar a história do território
Maré de Notícias #100
Jéssica Pires
A história da Maré é de luta, já sabemos. E da importância dessas histórias serem contadas, dos nossos ancestrais para nós “contemporâneos”, nascem as “griots” da Maré – moradoras que acumulam a história do território, juntamente com a história de suas vidas. Griots são pessoas que tinham o compromisso de preservar e transmitir histórias, fatos históricos e os conhecimentos ao seu povo. Elas e eles ensinavam a arte, o conhecimento de plantas, tradições, histórias e davam conselhos aos jovens príncipes na África. A Maré também tem griots, e a Nova Holanda é o lugar de duas delas: Durvalina e Aidê, que carregam a oralidade – esse dom que traz embutido a responsabilidade de compartilhar a memória do nosso território.
Durvalina Pacheco de Souza tem 88 anos e chegou à Maré em 1979. Ela saiu de Teófilo Otoni em direção a Belo Horizonte, com os filhos e, depois de 10 anos, veio para o Rio de Janeiro. Ao chegar, foi para a casa de uma das filhas que já morava aqui na Maré, na Nova Holanda. Nessa época, segundo a griot, “a Maré não tinha nada, a não ser Deus”. A água era garantida pelo esforço hercúleo das mulheres. Elas a traziam da Avenida Brasil em tambores chamados “rola”. Os “rolas” eram empurrados pela força da cintura das mulheres. Durvalina tomava emprestado com vizinhos um desses tambores, que deveria ser devolvido cheio, em troca do favor.
As memórias de Durvalina são compartilhadas com quem estiver disposto a ouvir. Ela diz que a sua vida é contar histórias. Enquanto tiver saúde, vai seguir compartilhando suas memórias. Ela as conta, por onde circula, para crianças, jovens, artistas e quem estiver disposto a fazer essa troca, de preferência acompanhada de um cafezinho. Mas, sem dúvidas, sua grande família é privilegiada. Só na Maré são 16 netos, 32 bisnetos e 36 tataranetos. Família negra da qual se orgulha. Um ponto, inclusive, observado por ela é que a Nova Holanda é ocupada por uma grande população negra, que se misturou com os migrantes africanos.
Durvalina e Aidê se conheceram quando Durvalina chegou à Maré. Aidê, que na verdade se chama Maria Augusta da Conceição, com 87 anos, conheceu e conta sobre uma Maré ainda mais precária e com menos estrutura. Ela chegou ao Rio de Janeiro, de Minas Gerais, com os pais, aos 12 anos de idade e o apelido “Aidê”, que ganhou assim que chegou, tornando-se praticamente seu nome oficial. O primeiro destino da família foi o Morro do Querosene, no Rio Comprido. Muitas famílias de lá foram removidas para a região da Nova Holanda na época. A favela foi aterrada, planejada e construída pelo poder público no início da década de 1960 e as famílias que ocuparam a região vinham de remoções da cidade.
Aidê acompanhou as maiores transformações da Maré. A Maré que via, quando chegou, era “água pura”, “lama”. Quando chovia, as ruas ficavam cheias de água e tomadas por insetos. “Tinha muito mosquito, barata, mosca”, conta a griot. Mas foi aqui que ela construiu a família com quatro filhos (três homens e uma mulher), de que, hoje, assim como a sua companheira de histórias, se orgulha.
A Nova Holanda e a Maré são lugares de encontros. Encontros de crenças, de trajetórias, de culturas, de partidas e de destinos. Valorizemos essas memórias que dão sentido e favorecem a nossa luta, tanto a diária, quanto por direitos coletivos e maiores.
Você sabia?
*Nova Holanda tem 4.601 domicílios e 13.799 habitantes (Censo Maré 2013).
*Sua ocupação é diferente das demais realizadas na mesma época: a Nova Maré foi planejada e construída pelo poder público na década de 1960, sob o governo de Carlos Lacerda, para abrigar moradores de morros demolidos para a ampliação da cidade.
* O grande porte do aterramento feito influenciou a escolha do nome do empreendimento: Nova Holanda – uma referência ao país europeu, localizado, em grande parte, abaixo do nível do mar.