Por projeto De Olho na Maré
Na última quarta-feira (13), integrantes da Redes da Maré estiveram no Supremo Tribunal Federal para o início do julgamento da ADPF 635, conhecida como ADPF das Favelas, que tem o objetivo de reduzir a letalidade policial.
A instituição, junto de outras organizações da sociedade civil, é amicus curiae (amiga da Corte) da ação e, portanto, faz parte do corpo de defesa da ADPF. Na ocasião, a advogada do Eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça Marcela Cardoso apresentou a sustentação oral. Em sua fala, Marcela assinalou a importância desse instrumento jurídico na defesa do direito mais básico de todo o ser humano que é o direito à vida e destacou como as populações já vulnerabilizadas por outros marcadores são as mais prejudicadas pela atuação belicosa do Estado.
O impacto da ADPF 635 na Maré
A Maré é um território que, historicamente, tem sido alvo de políticas de segurança pública marcadas por arbitrariedades, com centenas de operações policiais realizadas ao longo dos anos. Somente em 2024, o território já enfrentou 39 ações com essa característica. O Eixo de Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça (DSPAJ) da Redes da Maré, por meio do projeto De Olho na Maré, desempenha um papel fundamental na coleta de dados sobre a violência armada no Conjunto de Favelas da Maré. Desde 2016, por meio do Eixo, a Redes vem monitorando a dinâmica da violência no território com a realização dos Plantões de Operação, onde é feito o acolhimento de vítimas de violência, mediação de conflitos e facilitação no acesso a direitos com profissionais do direito, da psicologia e do serviço social trabalhando in loco durante as ações policiais. Essa forma de atuação tem como objetivo garantir a presença ativa e comprometida da sociedade civil organizada com a segurança e os direitos das comunidades afetadas.
Dada a frequência e o impacto dessas ações, torna-se cada vez mais imperioso que as intervenções policiais sejam conduzidas sob regulamentações rigorosas e eficazes, que assegurem a proteção da vida e dos direitos dos moradores e moradoras, não apenas da Maré, mas de todas as favelas do Rio de Janeiro. É precisamente essa a proposta da ADPF 635. Mas, afinal, qual tem sido a real influência da ADPF sobre as 15 favelas da Maré?
De acordo com os dados produzidos pelo De Olho da Maré, os índices de operações e mortes variam e não seguem de forma constante. Isso porque não podem ser analisados como fatos isolados e estão sujeitos à influência da conjuntura política e fatores internos e externos. A ADPF é um dos fatores de relevância que impactam na redução da letalidade durante as operações.
Os anos de 2018 e 2019 apresentaram um número de mortes superior ao de operações, e especialmente 2019, foi um ano de grande crescimento da letalidade policial na Maré. Isso se explica pela conjuntura do governo Wilson Witzel, que se pautou no discurso de militarização, incluindo a famigerada frase “a polícia vai mirar na cabecinha e… fogo!”. No mesmo ano, o índice de Mortes Decorrentes de Intervenção Policial (MDIP) no estado também cresceu, chegando à maior taxa nos últimos 10 anos, segundo os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). A isso, soma-se o fato de a Ação Civil Pública da Maré (ACP-Maré), uma iniciativa judicial coletiva que versa sobre segurança e redução de letalidade policial na Maré, ter perdido a sua validade.
Entre 2020 e 2021, em decorrência da ADPF 635 e do fator pandemia do COVID-19, houve redução no número de operações e no índice de mortes na Maré. O ano de 2022 trouxe um novo aumento relacionado à agenda eleitoral do governador Cláudio Castro, baseada em uma política de segurança pública de policiamento ostensivo, operações policiais e maior letalidade. Entre as cinco maiores chacinas policiais na história do Rio de Janeiro, duas ocorreram em 2022. Além disso, no dia 25 de novembro do mesmo ano, uma operação na Maré deixou oito mortos. Uma análise das taxas de Mortes Decorrentes de Intervenção Policial (MDIP) em 2022 evidencia essa disparidade: na Maré, a taxa alcançou 20,3 por 100 mil habitantes, um número significativamente superior aos 8,3 registrados no Rio de Janeiro e aos 3,2 da média nacional.
Não há uma tendência histórica constante e, sim, contextos e tensionamentos que se expressam nos dados apresentados, e que podem apontar para as oscilações e uma não observância de padrão.
Nos últimos anos, a Maré tem sido marcada por uma escalada preocupante de operações policiais, com destaque para 2023 e 2024. Embora este ano ainda não tenha terminado, já se registaram 17 mortes em 39 operações policiais, incluindo duas de policiais, mais que o dobro de fatalidades do ano passado. Esses números, porém, revelam apenas uma parte da realidade vivida pelos moradores e moradoras da Maré e de outras favelas do Rio de Janeiro. A violência vai muito além dos dados de óbitos: envolve o cotidiano de quem convive com o medo, com a presença constante de forças de segurança e com os efeitos profundos que essas intervenções têm sobre a comunidade.
Outra questão fundamental diz respeito à realização de perícias. Historicamente, o número de investigações forenses em casos de mortes decorrentes de intervenções policiais tem sido extremamente baixo. Para enfrentar essa lacuna, a ADPF 635 estabelece diretrizes legais que visam assegurar a realização de investigações forenses em casos de violência estatal nas favelas. A medida sobre as perícias busca garantir a imparcialidade, a transparência e a eficácia das investigações, salvaguardando os direitos das vítimas e promovendo a responsabilização dos perpetradores. De acordo com os dados do De Olho na Maré, desde 2016, foram registrados 145 homicídios provocados por agentes de segurança pública durante operações policiais nas favelas da Maré. Em apenas 9 dessas mortes houve a realização de perícia criminal.
Em 2024, houve apenas duas perícias para 17 mortes. A primeira ocorreu no caso da morte de Jefferson Araújo Costa em 8 de fevereiro, em um dos acessos ao Parque Maré. A segunda investigou a morte de dois policiais do BOPE no Morro do Timbau, no dia 13 de junho. Importante salientar que nesse mesmo dia, outras duas pessoas foram mortas e não houve realização de perícia para esses homicídios. As duas perícias evidenciam uma série de desafios nesta agenda, uma vez que somente os policiais tiveram direito à investigação e o caso de Jefferson foi de grande repercussão e sua morte ocorreu na Avenida Brasil e não no interior do território. Segundo Luiz Carlos Junior, coordenador do De Olho na Maré, “a Segurança Pública, assim como todas as outras políticas públicas, está sujeita a constantes disputas entre o cenário político e a influência da sociedade civil organizada.” A sociedade civil exerce o controle social para garantia de direitos aos cidadãos, impactando significativamente nos efeitos das estratégias adotadas pelo Poder Público. Por controle social, a equipe de pesquisa do De Olho na Maré entende a participação popular na construção e monitoramento de políticas públicas, de forma democrática e transparente. Na Maré, uma série de fatores vêm influenciando os resultados das dinâmicas no campo da segurança pública nos últimos anos, como mostram dados produzidos pelo grupo de pesquisa De Olho na Maré.