Consumo ou carinho?

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Para o 12 de outubro, pais tentam ajustar o orçamento à demanda dos filhos. Mas o que fazer quando isso não é possível?

João Ker

Enquanto uns esperam ansiosos a chegada de 12 de outubro, outros começam a se desesperar com o significado perdido da data e a demanda incessante de presentes que ela cria na mente do público infantil. Na TV, na escola e na internet, o Dia das Crianças já começa a espalhar sua publicidade agressiva e a incentivar o consumismo desenfreado dos brasileiros. Mas como lidar com o fato de que nem sempre é possível presentear seu filho ou sua filha com a última boneca da moda, o celular mais incrível ou aquela roupa de marca que todos estão usando? Como dosar o excesso de bens materiais com a oferta de carinho à criança?

Brinquedos por toda parte expostos em uma loja da Vila dos Pinheiros | Foto: Elisângela Leite

“Uma das grandes ilusões dos pais modernos é exatamente a de poder preencher, agradar ou satisfazer seus filhos com o próximo produto a ser oferecido. A mesma ilusão é produtora de sentimentos de culpa, fracasso e desvalorização pessoal quando não pode suprir as expectativas dos filhos. O produto em lugar do afeto e da atenção”, observa Roberto Stern, psicólogo e integrante da Comissão Regional de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia do Rio. De acordo com ele, há um perigo latente em pais que não conseguem dizer ‘não’ aos filhos e atendem a todas as suas vontades, sem pensar nos danos imediatos e futuros que isso possa causar. “As crianças, provocadas e estimuladas a partir da propaganda e do conhecimento, naturalmente têm demandas sempre renovadas que expressam no interior da família. Quando esta responde atendendo continuamente a estes anseios, cria um padrão de relacionamento onde a oferta dos produtos é o significante do afeto. A criança pode só se sentir amada na presença dos presentes”, explica.

Entretanto, o psicólogo alerta que o problema principal não é a quantidade de presentes que uma criança recebe nesta ou em qualquer outra data, mas a forma como os pais atendem a esse pedido. “Quando eles participam do uso e permanecem próximos aos filhos, isso não funciona de forma equivalente àqueles que meramente entregam o mesmo presente e se distanciam”, aponta Roberto, acrescentando que ainda assim é preciso tomar cuidado com a “bonificação” desenfreada, que também pode ser nociva ao comportamento infantil.

Na escola, esse excesso de produtos e de consumo pode gerar uma diferenciação de certas crianças em relação a outras, um problema que ataca ambos os lados: os que têm demais e os que não conseguem ter. Há mais de 20 anos dando aulas na Ilha do Governador, nas redes pública e particular, para alunos que vão do 6º ano do Ensino Fundamental ao 3º ano do Ensino Médio, Claudia Thompson conta como alguns alunos mais pobres se comportam próximo ao Dia das Crianças: “alguns criam uma fantasia porque ouvem o tempo inteiro na televisão que precisam comprar isso ou aquilo, ter o celular ou a roupa tal. A gente sabe que aquela família não tem nada disso, conhece a realidade, conhece pai e mãe, mas as crianças vivem em um mundo alternativo. Como você diz para a criança que ela não vai conseguir?” – questiona a professora de Geografia.

De acordo com ela, essas crianças normalmente se sentem isoladas e viram alvos temporários. “Não chega a haver uma inclusão. Quem ganhou quer mostrar que ganhou, a não ser que seja uma pessoa muito amiga. Mas isso depende bastante do aluno. Alguns menosprezam muito o outro, e isso vai da índole de cada um. É um fenômeno que eu observo tanto no ensino particular quanto no púbico. É uma questão de educação”, explica Claudia, que conta já ter ouvido até de alguns pais insensíveis que, se os filhos têm presentes, eles têm o direito de se exibirem.

Essas crianças precisam de atenção.

Ainda que as crianças em situação econômica mais vulnerável possam sofrer bullying ou mesmo uma tristeza temporária por não terem “o presente ideal”, isso não significa que aquelas presenteadas se sintam tão melhores assim. Para Claudia, existe um problema muito mais latente no ensino particular: pais que tentam corrigir a ausência afetiva com bens materiais. “Eu vejo muito disso na classe mais alta, de o pai tentar compensar o amor com presente”.  Ela conta que também já conheceu famílias em que os responsáveis passam o dia trabalhando fora e ainda assim não conseguem suprir algumas necessidades dos filhos: “Eles sempre vão tentar fazer de tudo pela criança, não importa a renda que tenham”, comenta.

Essa impossibilidade muitas vezes gera o processo inverso, como ela observa. Os pais se sentem culpados por não poderem presentear os filhos e, ao invés de suprirem a carência financeira com amor, acabam se distanciando ainda mais. “Quando eles têm problemas com os pais, passamos por situações muito complicadas na escola, porque fica evidente a falta que isso faz. Já tive caso de alunas que tentaram se matar no meio da escola, falando:  “por que meu pai tem filho se não quer saber da gente? Por que ele briga comigo por estar desempregado? Eu não tenho culpa!”, relata.

Com suas mais de duas décadas dedicadas à convivência com crianças e pré-adolescentes dos mais diferentes recortes sociais, Claudia afirma ainda que a necessidade do consumo infantil não é nenhuma novidade e que ela também passava por isso quando tinha essa idade. A mudança real está na relação entre pais e filhos, algo que ao longo do tempo se perdeu de uma forma nada positiva. “As pessoas não estão dando carinho. Em todos os níveis sociais, o que mais falta é atenção. E não precisa ser uma família no modelo tradicional, com pai, mãe e filhos – é só ter alguém que goste e demonstre. O resto, as crianças vão aceitando se você conversar”, alerta.

No âmbito escolar, ela conta que professores, orientadores e pedagogos fazem uma força conjunta para ajudarem os estudantes que eventualmente possam se revoltar com isso: “O que tentamos fazer é mostrar que pode não estar ganhando o presente que se quer hoje, mas no futuro poderá dar aquilo para o seu próprio filho. É preciso fazer um trabalho muito intenso para eles não ficarem perdidos, mas com conversa eles entendem. No fundo, a criança não está preocupada em ganhar presentes. É um problema apenas afetivo”, complementa, reconhecendo que ao longo da carreira já encontrou colegas com pensamentos diferentes e com certa relutância em incentivar alunos a se desenvolverem.

Roberto também afirma que trocar o carinho familiar por presentes, ou mesmo anular a atenção em função deles, pode gerar sequelas no comportamento das crianças. “O desenvolvimento da personalidade de uma criança, até que se torne adulta, está condicionado por muitos fatores e não apenas por um aspecto. Uma família que responda a essas necessidades de atenção, sempre e principalmente com a oferta de produtos, pode facilitar a estruturação de uma pessoa que compulsivamente necessite consumir para aplacar suas ansiedades. Isso pode ir desde um mero hábito consumista até uma situação patológica de consumo compulsivo”, alerta.

Para o psicólogo, as afirmações prestadas por Claudia estão corretas e devem ser levadas em consideração: o mais importante para o desenvolvimento saudável da mente de uma criança está longe de ser o que ela vai ganhar em qualquer data comemorativa: “naturalmente, a sociedade que diferencia e hierarquiza as pessoas por suas diferenças de posses, de cor, de região, de habitação é tremendamente perversa com as crianças, pois estas são afetadas diretamente pela propaganda. Porém não são produtos, mas atenção e afetividade que podem conter e evitar os sentimentos de desvalia que tendem a ser desenvolvidos neste processo”.

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