Conto: O casamento na palafita

Data:

No Dia Mundial da Água, Maré de Notícias publica conto sobre palafitas da Maré.

Por Jaqueline Olimpio, em 22/03/2022 às 07h.

Faz mais de vinte anos que meu amigo Juvenal se casou…

E não foi um casório normal, não. Na verdade, acho que foi o casamento mais estranho já acontecido na Maré. Nesse tempo, a Baixa do Sapateiro ficava quase toda sobre palafitas. E eu morava lá…

A cerimônia começaria às quatro da tarde, mas só comecei a me arrumar depois do almoço. Coloquei um vestido branco que uma tia me trouxe da Paraíba… já estava um pouco amarelado… sorte não estar ruído pelos ratos que invadiam o barraco à noite. Era quando a maré enchia e molhava o chão de madeira com a água podre do mangue. Procurei minhas bijuterias, que há tempos não usava. Encontrei-as num velho pote de biscoitos, escurecidas pela maresia.

Na pressa, esqueci de pegar um sapato emprestado com a vizinha e calcei um surrado salto alto. Só terminei de me aprontar no caminho da igreja. A cerimônia foi simples e rápida. Aconteceu na Igreja Nossa Senhora dos Navegantes – que

era bem menor do que hoje e ficava na parte de terra firme… Até aí tudo normal. Mas a grande surpresa estava reservada para a festa do casamento… Uma festa em plena palafita na Baixa do Sapateiro, na casa do Juvenal. A distância entre a igreja e o local da festa não era muito grande… uns cinco minutos de caminhada sobre pontes de palafitas. Andava devagar, para não afundar o salto alto na madeira podre das pontes que ligavam um barraco ao outro.

O barraco do Juvenal era maior que o meu. Tinha dois cômodos. Me impressionei com a organização: num canto da sala, em cima de uma mesa calçada com tijolo, estava o bolo. No outro canto, estavam os croquetes, refrigerantes e vários tipos de bebidas alcoólicas. E na entrada da casa, perto da porta, lá estava uma velha vitrola. Mas e os convidados? Quando já eram umas sete e meia, foram chegando aos poucos. Alguns vinham diretamente da igreja, outros de casa. Foram se espalhando pela casa e na ponte que ficava na frente dela. Bateu oito da noite e já estava tudo lotado! Era gente que não acabava mais. Só de parentes, devia ter uns 20 ou mais… gente que veio do norte, da Baixada e de vários outros lugares distantes… sem falar nos convidados e penetras – que não eram poucos!

A festa estava bem animada. O som da velha vitrola rolava solto – mesmo com a agulhinha pulando do meio de uma música para a outra… os convidados comiam e bebiam… tinha um tio do Juvenal que, de tão bêbado, já nem sabia quem estava se casando.

Tudo estava indo muito bem. Os noivos felizes, os amigos e parentes se divertindo… Até que apareceu um primo do Juvenal com um disco debaixo do braço dizendo que ia abalar. Quando o rapaz colocou o disco na velha vitrola, pensei que diabo iria sair dali. De repente, a surpresa: começou a tocar a música da Gretchen. Pra quê? Foi uma danação. O povo começou a pular, as moças a rebolar, os rapazes a sapatear… todo mundo movido pelo efeito da bebida.

À medida que o “piri-piri-pipi” da Gretchen tocava, mais o povo dançava. Os noivos, dentro do barraco, só riam. E a música continuava: “piri-piri-pipi”… e o mundaréu de gente dançando sobre o frágil chão de madeira da palafita… “piri piri-pipi”… se espalhando por todo o barraco… “piri-piri-pipi”… senti a ponte balançar… “piri-piri-piri-pipiripi-pam-pum-ai”… de repente ouvi um “creck”. Parecia uma caixa de ovos quebrando. Foi a coisa mais bizarra da minha vida… com a puladeira do pessoal, a ponte na frente do barraco desabou. Quando dei por mim, estava com a cara na lama fedorenta… do meu lado, umas vinte pessoas com os cabelos grudados com o lodo sujo… Quem estava de branco ficou preto, quem já era preto ficou mais preto ainda… parecia até pegadinha do Faustão… engraçado foi o tio do Juvenal que ficou atolado na lama cantando: “piri-piri-pipi”.

Ao sair da lama, encontrei o Juvenal desolado no canto do barraco. Dei um tapinha nas costas dele e falei:

– Fica assim não! Seu casamento vai ficar marcado na história da Maré.

E não me enganei. Até hoje tem morador antigo que lembra do inusitado casamento na palafita.

***O Livro Contos e Lendas da Maré é a expressão efetiva de histórias que foram recolhidas, sistematizadas e escritas por um conjunto de adolescentes e jovens da Maré, de variadas comunidades. Os autores do trabalho entrevistaram um conjunto expressivo de moradores.


Link para o PDF do livro Contos e Lendas da Maré do CEASM

Compartilhar notícia:

Inscreva-se

Mais notícias
Related

Semana dos Direitos Humanos da Maré tem diálogo com crianças e adolescentes

Crianças e adolescentes mareenses se reúnem para troca de experiências e reflexões sobre segurança pública

Série “Amar É Para Os Fortes” será exibida gratuitamente na Maré

Série sobre violência das operações policiais em favelas será exibida na Maré nesta quarta (05)

Das pistas de atletismo da Maré para solo estadunidense

A trajetória do atleta mareense de 22 anos que, por meio da corrida, pôde voar.

Rene Silva e Flavia Oliveira são homenageados pela deputada Renata Souza

Renata Souza entrega Medalha Tiradentes a Rene Silva e...