Operações policiais em tempos de COVID-19

Data:

Abordagem, legalidade e impactos das ações policiais na Maré durante a pandemia do novo coronavírus

Maré de Notícias #112 – maio de 2020

Jessica Pires

Em 2019, foram quase 300 horas de operações policiais na Maré, em que, pelo menos, numa das 16 favelas, houve violações de direitos de diversos tipos. Em 2020, o cenário da política de Segurança Pública nas favelas também muda, com a pandemia do novo coronavírus. Acontecem menos operações na cidade, mas na Maré, não só as operações como as violações seguem em curso. Os impactos que as operações policiais têm no território da Maré e na vida de mais de 140 mil moradores são conhecidos e registrados em seus cotidianos.

O ano de 2019, infelizmente, voltou a ser um marco de danos e perdas para a Maré. Das 49 pessoas que morreram por arma de fogo, em 2019, (mais que o dobro do que em 2018), 34 foram em decorrência da ação policial. Foram 24 dias de aulas suspensas e 25 dias sem atendimentos nas unidades de saúde, ou seja, cerca de 15 mil atendimentos não realizados. Os confrontos ocorreram em 69% das vezes fora do horário comercial e de funcionamento das escolas e unidades de saúde. São dados do Boletim Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça 2019, produzido pela Redes da Maré.

É sempre bom lembrar que a luta por uma política de Segurança Pública que preserve vidas e direitos não é contra haver operações policiais nas favelas, ou ainda, que a Polícia não deva exercer o seu trabalho. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 144, estabelece que a Segurança Pública é dever do Estado e direito e responsabilidade de todos. Portanto, nas favelas, esse direito deve ser exercido da mesma maneira que em outros territórios da cidade, por exemplo.

Porém, essa lógica de criminalizar territórios populares, reduzindo ou retirando direitos daqueles que estão em uma posição social de menos privilégios, não é uma prática nova. Fato é que a informação é uma ferramenta importante para identificar quem está sofrendo uma violação. É preciso lembrar sempre e compartilhar com amigos, vizinhos e familiares o que não é permitido em uma ação policial em dias de operações.

Pandemia e operações policiais não combinam              

A Rede de Observatórios da Segurança divulgou, no início de abril, que houve uma redução de operações durante o mês de março, se comparado ao mesmo período de 2019. A redução de operações resultou na queda de vítimas fatais durante essas ações: foram registradas 15 mortes, em março de 2020, contra 36, em 2019, segundo dados da Rede. Contudo, mesmo depois do decreto de calamidade pública do governo do estado do Rio de Janeiro, em 20 de março, aconteceram três operações policiais na Maré. No dia 27 de março, Marcílio Dias foi o cenário da ação da PMERJ; no dia 6 de abril, foi o Parque União e no último dia 29 de abril, a operação aconteceu no Morro do Timbau, Baixa do Sapateiro e Nova Maré.

São maiores os impactos que as operações policiais trazem durante a pandemia. No dia 6 de abril, as Clínicas da Família Diniz Batista, do Parque União, e Jeremias Moraes da Silva, da Nova Holanda, tiveram o atendimento suspenso. Cestas básicas e kits de materiais de higiene e limpeza deixaram de ser entregues nas favelas do Parque União ao Morro do Timbau, por voluntários e equipes da Redes da Maré. Violações como invasão ao patrimônio também foram relatadas nas primeiras duas operações. No dia 29, foram as Clínicas da Família Augusto Boal e Adib Jatene que interromperam suas atividades.

“O que menos precisamos nesse momento é ter de acumular traumas. Ficar em casa isolado e não ter a certeza de quando isso vai acabar já é muito doloroso e traumático. Ter de conviver com tiroteios e todos os desrespeitos e riscos que uma operação causa é o que menos precisamos”, destaca Shyrlei Rosendo, “cria” da Maré, mestre em Educação e Políticas Públicas pela UNIRIO e coordenadora da equipe de mobilização do Eixo de Segurança Pública da Redes da Maré. As operações policiais descumprem, inclusive, a recomendação de distanciamento social da Organização Mundial da Saúde desde o início da pandemia do novo coronavírus, uma vez que a abordagem policial acontece, muitas vezes, por meio do contato. Além dos relatos de invasão a domicílios, frequentes na Maré.

Contra os excessos nas operações

No último dia 17 de abril, foi votada a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 635. Conhecida também por ADPF das favelas, é uma iniciativa coletiva que solicita ao Supremo Tribunal Federal (STF) que se posicione diante das ações inconstitucionais exercidas pela política de Segurança Pública adotada pelo governo do estado do Rio de Janeiro.

A iniciativa reforça a não utilização de helicópteros como plataforma de tiros e a adoção de medidas para a apuração de excessos durante as operações policiais, entre outros pontos. Apesar do parecer positivo, ainda será necessário que outros ministros que compõem o Supremo Tribunal analisem a ADPF. Até o momento do fechamento desta matéria, a ADPF estava sob a análise do ministro Alexandre de Moraes.

Quais procedimentos não podem acontecer?

Foram registrados 14 episódios de violência verbal e 18 de violência psicológica em dias de operações policiais na Maré, em 2019. Um policial não pode ofender ou constranger uma pessoa no momento da abordagem, de acordo com o item III, do art. 5º, da Constituição da República Federativa do Brasil.

Em 2019, foi registrado um caso de assédio sexual em uma operação policial na Maré.O policial não pode pedir que a pessoa abordada tire as roupas ou passar as mãos nas partes íntimas, assegurando o direito à indenização por dano moral, segundo o item X, também do art. 5º, da Constituição.

A equipe do Maré de Direitos registrou 26 episódios de invasão a domicílio em dias de operações policiais na Maré, em 2019. Segundo o item XI do mesmo art. 5° da nossa Constituição, ninguém pode entrar na residência de outra pessoa sem o seu consentimento, apenas em casos de flagrante, desastre ou para prestar socorro. Em caso de mandado, as buscas domiciliares serão executadas de dia e só podem acontecer, à noite, caso o morador dê consentimento. Segundo a Lei n° 3689/41 do Código de Processo Penal, os agentes deverão mostrar e ler o mandado ao morador antes de cumpri-lo, além de deixar claro os motivos da diligência. Ele deve estar assinado pela autoridade que o expediu.

Operações policiais não podem acontecer sem ambulância para o socorro de vítimas. De acordo com a Lei Estadual n° 7385/2016, o Poder Executivo deve garantir, obrigatoriamente, ambulâncias, em operações planejadas e com mais de cinco policiais, com possibilidade de confronto.

Sobre o direito de filmar

Um policial é um agente público, ou seja, um servidor do Estado, alguém que presta serviços para os demais cidadãos. Toda função pública pode e deve sofrer constante fiscalização pela sociedade. Sendo assim, qualquer cidadão tem autorização para fotografar ou filmar atividades realizadas por policiais.

De acordo com Guilherme Pimentel, ouvidor geral da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, os vídeos exercem importante função de controle social, atualmente: “Todo cidadão, hoje, exerce um papel muito fortalecido de controle social de atuação do agente público. Antes do smartphone, era a palavra de uma testemunha contra a de um agente público. Com o smartphone, gravações, fotos e vídeos podem desmentir versões facilmente.”

Não há procedimento operacional descrito que autorize um policial a retirar um celular de alguém que registre uma ação. “O telefone celular se tornou a ferramenta de trabalho do jovem periférico. Além de usar para se divertir e se comunicar, ele usa também para defender os seus direitos”, afirma a cientista política e professora da UFF, Jacqueline Muniz.

Outras dicas:

  • Quando possível, dialogue com o policial buscando demonstrar, de maneira tranquila, que você conhece seus direitos.
  • Caso não se sinta seguro no momento da abordagem, procure permanecer em locais públicos, evite espaços fechados e onde as pessoas não possam acompanhar a abordagem policial.
  • Caso ocorra situações de violência e ameaça, tente demonstrar para vizinhos e familiares o que está acontecendo. Se na hora não for possível frear a violência, busque elementos que possam identificar o agente que está agredindo.
  • Caso não consiga evitar situações de violências, busque registrar o máximo de informações sobre aquela situação: grave um áudio logo após o ocorrido, com informações sobre o local, horário e detalhes da abordagem (tipo físico do policial, forma de abordagem e sequência das violências e violações). Caso tenha feito algum dano físico e material, busque registrar através de foto e vídeo com a câmera deitada.

Compartilhar notícia:

Inscreva-se

Mais notícias
Related

Por um Natal solidário na Maré

Instituições realizam as tradicionais campanhas de Natal. Uma das mais conhecidas no território é a da Associação Especiais da Maré, organização que atende 500 famílias cadastradas, contendo pessoas com deficiência (PcD)

A comunicação comunitária como ferramenta de desenvolvimento e mobilização

Das impressões de mimeógrafo aos grupos de WhatsApp a comunicação comunitária funciona como um importante registro das memórias coletivas das favelas

Baía de Guanabara sobrevive pela defesa de ativistas e ambientalistas

Quarenta anos após sua fundação, o Movimento Baía Viva ainda luta contra a privatização da água, na promoção da educação ambiental, no apoio às populações tradicionais, como pescadores e quilombolas.