Subnotificação de casos: a Maré é bairro!

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Números oficiais de casos divulgados da COVID-19 não refletem a realidade da Maré

Maré de Notícias #112 – maio de 2020

Jéssica Pires e Dani Moura

A Maré é formada por 16 favelas que reúnem mais de 140 mil moradores em 5,79 km² de área, sendo um morro. cuja população supera a de municípios do estado do Rio de Janeiro, como Queimados e Maricá, por exemplo, que contabilizam, de acordo com o Censo do IBGE de 2010, 137.962 e 127.461 habitantes, respectivamente. Há favelas na Maré com mais de 20 mil moradores, como é o caso do Parque União, e outras, que concentram mais de três moradores em um mesmo domicílio, em média, como o Conjunto Bento Ribeiro Dantas e a Nova Maré. Domicílios que em grande maioria não passam de três cômodos.

Até o momento do fechamento desta matéria (04 de maio), a Maré tinha 30 casos confirmados de coronavírus, e seis óbitos, de acordo com o Painel Rio COVID-19, que concentra e divulga as informações das secretarias de saúde sobre os casos do novo coronavírus. Contrapondo os dados oficiais, diariamente são vistos relatos de moradores nos grupos de WhatsApp da Maré, informando sobre óbitos de pessoas com síndromes respiratórias. O movimento de uma possível subnotificação também acontece em outras favelas do Rio: o Jornal Voz das Comunidades publicou, em uma rede social no último dia 20 de abril, que o Complexo do Alemão tem mais de mil casos suspeitos de coronavírus. O levantamento foi feito por profissionais da Clínica da Família Zilda Arns. O Painel da Prefeitura contabiliza apenas quatro casos na região.

A possibilidade de existir subnotificação é confirmada pelo Ministério da Saúde e por inúmeros estudos de instituições consagradas, como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Como não há testagem em massa, boa parte dos doentes assintomáticos ou com sintomas leves não chega a ser testada.

Duas clínicas particulares da Maré que estão realizando testes de COVID-19 cobram cerca de R$200 por testagem – Foto: BERNADO PORTELLA / FIOCRUZ

As evidências indicam, no entanto, que até mesmo o número de mortes de casos graves de coronavírus é maior do que o confirmado oficialmente a cada dia, pelo Ministério da Saúde e as secretarias estaduais. É o que mostram alguns dados do Portal de Transparência dos Cartórios do estado do Rio. Em comparação com 2019, houve um aumento de 2.500% do número de mortes por síndrome respiratória grave, uma das consequências da COVID-19 no corpo. Outro dado relevante é o aumento de 8.533% do número de mortes sem causa definida.

Um estudo da Fiocruz mostrou um aumento expressivo nas internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) este ano, no Brasil, em comparação com a média dos últimos 10 anos. Na contagem da Fiocruz, até 4 de abril deste ano, o Brasil teve 33,5 mil internações por SRAG, muito acima da média desde 2010, de 3,9 mil casos. Mesmo em 2016, quando houve um surto de H1N1, foram registrados 10,4 mil casos no mesmo período do ano.

Diante risco de contaminação por COVID-19, alguns atendimentos estão acontecendo na área externa das unidades de saúde da Maré – Foto: Douglas Lopes

Na Maré, a subnotificação é visível na UPA, com maior movimentação de ambulâncias e relatos de moradores. Segundo funcionários da unidade, que preferiram não se identificar, são atendidas cerca de 30 pessoas por dia com sintomas do novo coronavírus na unidade. Porém, como a indicação é que testes e internações sejam realizadas apenas em casos de sintomas graves ou gravíssimos, a recomendação é que as pessoas se isolem em suas casas.

De acordo com informações coletadas pela equipe de Serviço Social da Redes da Maré, as Clínicas da Família têm a recomendação de seguir o acompanhamento on-line com as pessoas que retornam para casa. Porém, não foi a realidade vivenciada por Felipe Afonso, morador da Nova Holanda: “Eu já não aguentava mais de dor no corpo, tossindo muito, febre altíssima, sem olfato, sem paladar. Então, no dia seguinte, fui ao posto e o médico me atendeu, passou Azitromicina e Novalgina, e me recomendou ficar em casa. Até o momento, ninguém entrou em contato comigo, faz 11 dias.”

“Meu pai fez uma tomografia no Evandro Freire no dia 20, dia em que foi internado. Pela tomografia, diagnosticaram a COVID. Só que o exame de sangue levava de 5 a 10 dias para o resultado. Quando aconteceu tudo (a notícia do óbito), dia 27, a menina do Ronaldo Gazolla disse que o resultado do exame de sangue ainda não tinha saído, e o óbito sairia como pneumonia viral com ‘suspeita de corona’, que depois eu poderia acionar pra poder trocar. Mas eu disse pra ela: ‘no que isso vai mudar?’” Esse foi o relato de Michele Araújo, moradora do Rubens Vaz, sobre a informação de tipo de morte que constou na certidão de óbito do pai, Olavo Pereira, de 64 anos. A morte de Olavo, portanto, não conta como um caso de coronavírus. A rapidez com que os casos têm evoluído e o tempo de testagem também contribuem para o processo de subnotificação.

Clínicas particulares

Outro cenário que fortalece a possibilidade de haver subnotificação, em especial na Maré, é o da realização de testes em clínicas particulares. Ainda na 3ª semana de recomendação de distanciamento social, quando a Maré registrava apenas oito casos, de acordo com as secretarias de saúde, o Centro Médico e Odontológico Popular Pinheiro, da Vila dos Pinheiros, já havia realizado 22 testes, com sete deles com resultado positivo para a COVID-19. De acordo com a responsável de uma outra clínica particular da Maré, que preferiu também não se identificar, os laboratórios particulares só têm autorização para passar informações sobre os casos para a Secretaria Municipal de Saúde.

A publicitação dos casos confirmados é de responsabilidade das secretarias municipal e estadual de saúde, após compilação dos dados digitados nas plataformas oficiais nas Unidades de Saúde. É o que conta Mirza Rocha de Figueiredo, médica epidemiologista do Núcleo Hospitalar de Epidemiologia do IFF/Fiocruz.

A Secretaria Municipal de Saúde informou que as notificações de casos confirmados de COVID-19 levam em consideração o endereço informado no momento do atendimento. A comunicação do Hospital Federal de Bonsucesso e do Hospital Municipal Evandro Freire, da Ilha do Governador, confirmaram que seguem esse padrão no processo de notificação. As equipes da Secretaria Municipal de Saúde informaram, também, que estão atentas às classificações territoriais e trabalham, continuamente, para identificar os casos em comunidades.

Bairros vizinhos da Maré

Enquanto a Maré, com mais de 140 mil habitantes, apresentava 30 casos e seis óbitos por COVID-19, bairros próximos, cujo número populacional é inferior ao da Maré, têm apresentado grande número de casos. Assim acontece com Bonsucesso, bairro que atende às principais demandas das favelas da Maré, como agências bancárias. O bairro tem cerca de 18 mil moradores, segundo o Censo IBGE de 2010, e apresentava 81 casos e 10 óbitos, em 02 de maio. Estes dados apontam um outro fator que favorece a subnotificação: muitos moradores que são atendidos em clínicas e hospitais fora da Maré identificam os seus endereços como bairros vizinhos e, não, Maré.

Cabe ressaltar a importância de os moradores da Maré identificarem os seus endereços residenciais, fazendo referência à Maré como seu bairro de origem, no momento do cadastro de atendimento nos hospitais e centros de saúde. Dessa forma, os dados poderão ser direcionados de forma correta nos bancos de dados dos hospitais.

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