Cria da Maré, jornalista Gizele Martins terá livro adaptado para o teatro

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Jornalista é a primeira entrevistada da série que estreia aos domingos, com personalidades e figuras relevantes

Por Edu Carvalho, em 14/02/2021 às 10h

Dando prosseguimento à nova fase do Maré de Notícias Online, que vem se consolidando como um dos veículos mais respeitados na produção de conteúdo jornalístico no país, abrimos nossa série de entrevistas aos domingos, trazendo para este espaço personalidades importantes para o contexto territorial, estadual e nacional. 

Para essa estreia, não poderíamos deixar de ouvir alguém que fosse ‘’cria’’. Ou em outras palavras: aquele que conhece, até de olhos fechados, cada esquina, canto e lugar do seu próprio lugar. Jornalista e Mestre em Periferias Urbanas, nossa entrevistada de hoje não nega as raízes: é mareense com estampa na testa, olhar e sorriso que toma conta de todo o rosto. Tendo lançado o seu livro ‘Militarização e censura: a luta por liberdade de expressão na favela da Maré’ há dois anos, em 2021 vê os frutos ainda serem colhidos. O escrito está sendo adaptado para o teatro, produzido e encenado por pessoas do próprio território. Para conversar mais sobre esta fase de criação, nossa equipe conversou com Gizele Martins. 

MDN: Como quer ser apresentada? Em qual das 16 favelas você mora?

Gizele: Sou Gizele Martins, 35 anos, comunicadora comunitária e jornalista, mestre em Educação, Cultura e Periferias Urbanas e moradora do Morro do Timbau.

MDN: O que mudou desde o lançamento do livro e o que não mudou – em relação ao assunto tratado?

Gizele: Lancei o livro no final de 2019. Ele foi resultado da minha pesquisa de mestrado.

Mais que isto, foi resultado do que eu e outros comunicadores da Maré sofremos no período da ocupação do exército na Maré nos anos de 2014 e 2015. Foi um período de muitas violações de direitos tanto para nós que produzimos jornalismo comunitário, quanto para cada morador da Maré. Eram muitas revistas, tiroteios, e muitas atividades culturais de rua também foram proibidas. Hoje, temos tais violações a cada operação policial, além da circulação mais frequente dos helicópteros blindados da polícia que ainda aterroriza nossa favela. Por conta desse aumento da militarização das favelas cariocas, a gente vê o quanto os comunicadores comunitários e populares ainda sofrem com censura, revistas nos celulares e tantas outras violações de direitos. Há pouco tempo tivemos comunicadores do Alemão sofrendo o mesmo tipo de abordagem policial e constrangimento.

MDN: Ser comunicadora periférica e falar de segurança é mais possível hoje do que era antes?

Gizele: Nestes 20 anos de jornalismo comunitário e pautando a segurança pública já enfrentei muitos desafios e censuras por parte das polícias. Hoje, acho que com o conhecimento e contatos que temos nos movimentos sociais, com os comunicadores comunitários de outras favelas e das organizações de direitos humanos, tudo isso faz com que a gente consiga pautar mais o tema e de forma conjunta, coletiva. O que 20 anos atrás era muito mais difícil.

MDN: Há censura? 

Gizele: Sim, há censura e autocensura. 

MDN: A Maré é o seu ”Brasil”?

Gizele: A Maré é o meu Brasil e o meu próprio mundo. Aqui a gente vê de tudo, desde o aumento da desigualdade social, a precarização do trabalho, a remoção da casa, o sucateamento da saúde e da educação, mas é aqui que vejo também a reorganização comunitária, a cultura nascendo, a busca por uma defesa da vida, do trabalho, vejo a força que temos e fazemos para continuarmos vivos. Acho que tanto nos problemas que enfrentamos, quanto nas soluções encontradas por nós, vejo um Brasil representado aqui.

MDN: Como é ver seu escrito agora sendo adaptado, e por um coletivo de dentro do território?

Gizele: Fiquei muito feliz com a notícia de ver o livro virando arte teatral e ainda sendo feito por moradores e artistas da própria favela. Tenho certeza que será mais fácil o conteúdo chegar aos moradores da Maré por meio da arte. Afinal, nem todo mundo sabe ler, nem todo mundo tem grana para comprar um livro.

MDN: Sente que alcançou quem desejava?

Gizele: Sim, com certeza transformar esse livro em peça teatral é alcançar os moradores que de alguma forma não teriam acesso ao livro e isso me deixa muito feliz. E esse é o nosso objetivo na comunicação comunitária, o de falar para todos os públicos.

Maré como bunker de potência

A obra é adaptada pelo Coletivona, iniciativa criada em 2018 e composta por mulheres da cultura em contato com mulheres de várias formações, tendo a conversa no chão mareense. Para entender como está sendo o processo, conversamos com Natasha Corbelino, diretora da peça. Para ela, o que vem sendo feito é uma captação dos sentidos em relação à narrativa contada por Gizele. ‘’Não diria que estamos fazendo uma adaptação, mas talvez uma mediação entre a palavra impressa no livro e o campo das artes na cena. Não existe adaptação, é o documento real. A cena documental performativa é o que temos buscado, pensando que seja justamente sobre não adaptar, não se adaptar, mas gritar sobre e com ele, criar dobras, abrir frestas de conversa, somar percursos numa cena que reverencie o livro como ato de criação, instrumento de luta, revolução, denúncia política e exaltação da Maré como bunker de potência’’, conta. 

‘’Sinto que este projeto é daqueles acontecimentos que de fato precisam acontecer na cidade do Rio de Janeiro, no Brasil, o quanto antes e em continuidade’’, diz a diretora, evidenciado o fato da importância do protagonismo pautado por comunicadores territoriais. ‘’O Rio de Janeiro precisa da obra da Gizele para que sejam contados mais capítulos da história que a História não conta. E a Maré é quem narra a obra. A Maré é um bálsamo de criação’’. 

Sobre o legado e importância da ação, Natasha reflete sobre o que possibilitou o fato de não só Gizele, mas também tantos outros poderem ter interlocução com todas as pessoas e partes da cidade. ‘’Significa reverenciar a Maré e tudo que veio antes, e de tudo que virá depois, tem vindo, está vindo, neste movimento firme de criação de laços. Andar em coro e com passos coreografados pelo respeito e admiração, unindo documento, dramaturgia, memória e futuro para dar conta do que o livro instaura no mundo’’. 

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