Das Olimpíadas à luta por justiça: memórias e mudanças sociais de uma década

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Uma retrospectiva das histórias marcantes que tornaram-se memória da Maré contadas pelo Maré de Notícias

Por Hélio Euclides, Teresa Santos e Viviane Couto

Ao olhar o relógio e ver seus ponteiros a girar, é possível constatar que o tempo não para. O Maré de Notícias é um contador de histórias de pessoas que constroem a favela. E suas 150 edições, o Maré de Notícias acompanhou o que aconteceu não apenas nos territórios, como também a história se desenrolando no mundo, analisando e trazendo aos moradores todas as mudanças que, de uma forma ou de outra, influenciaram nossas vidas — e como os moradores das favelas estão impactando o mundo de volta.

Poluição persistente

Em 2012 e já dentro dos preparativos para os Jogos Olímpicos de 2016, uma obra prometia a recuperação ambiental do Canal do Fundão. Para os pescadores da Maré, ela gerou muita expectativa.

Marcos Firmino é administrador financeiro da Colônia de Pescadores do Parque União – Foto: Hélio Euclides

“Teve grande melhora no início, mas o projeto não foi á frente e a lama se assolou, voltou tudo ao que era antes”, lembra Marcos Firmino, administrador financeiro da Colônia de Pescadores do Parque União, uma das quatro que existem hoje na Maré. 

Segundo ele, “somos uma classe que sofre com a poluição, que atinge redes e hélices dos barcos. Hoje só tiramos o nosso sustento e do combustível. Nas Olímpiadas o que se viu foi apenas ganância. É preciso investimento na baía, valorizando o turismo e a pesca”.

Cidade vulnerável

Para o engenheiro sanitarista Alexandre Pessoa, professor e pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV /Fiocruz), a limpeza do Canal do Fundão já apresentava um erro de origem, pois o projeto não previa a dragagem do Canal do Cunha. 

Na prática, a remoção de sedimentos foi feita apenas em trechos do Canal do Fundão e não em sua extensão total: “Não foi uma obra para diminuir as inundações nas comunidades, o que eu considero um grave equívoco”, diz o especialista.

Para o engenheiro, “a cidade do Rio de Janeiro pode ser considerada vulnerável porque nunca foi minimamente preparada para as chuvas fortes. E, agora, a questão se intensificou, sendo ainda mais dramática nas favelas mais baixas como Maré e Manguinhos”.

Atletismo local

Enquanto pensávamos no saneamento público, em 2013, a Jornada Mundial da Juventude prometia agitar o Rio de Janeiro, trazendo jovens de todos os lugares do mundo para um grande evento religioso e a Maré não ficou de fora. 

“A Vila do João acolheu peregrinos de outros estados, que não hesitaram em vir para Maré. Eles perceberam que somos potência, temos criatividade e resiliência, que podemos ocupar qualquer espaço, onde quisermos, com seus desafios e superações”, diz a jornalista Priscila Xavier, entrevistada na primeira edição do Maré de Notícias. À época, Priscila era carateca e tinha o sonho de participar dos Jogos Olímpicos do Rio. 

Em 2009, Vinícius contou ao jornal seu sonho com o esporte. Hoje é professor de natação – Foto: Hélio Euclides

Em 2009, o Maré de Notícias já acompanhava os atletas locais. Além de Priscila Xavier, Vinícius Pereira, que tinha 14 anos na época e era atleta amador, trazia a expectativa de que o evento pudesse mudar sua vida. 

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Ele não chegou a participar das Olimpíadas, mas continuou na natação. “Consegui uma bolsa integral em uma faculdade e concluí o curso de educação física. Fui aluno e atleta da Vila Olímpica Municipal Seu Amaro e sigo como professor. Pretendo no futuro cursar a licenciatura para ingressar numa escola municipal”, diz.

Violência 

Em 2013, os moradores vivenciaram momentos de terror com uma operação do Batalhão de Operações Especiais (Bope), uma chacina na qual dez pessoas foram mortas — um episódio que deu visibilidade à violência nas favelas do Rio. 

Historiador e professor, ex-diretor da Redes da Maré Edson Diniz acredita que os eventos trouxeram mudanças significativas.  “O massacre que ocorreu em 2013 na Nova Holanda foi algo terrível, mas mobilizou todos para um ato pacífico na Avenida Brasil que foi capa de todos os jornais no dia seguinte, fazendo a sociedade criar formas de enfrentamento à violência”, lembra.

A ocupação militar dos territórios em 2015 assustou até os especialistas em segurança pública, gerando um período de medo, incertezas e enfrentamento armado quase que diário que acabou com a saúde física e mental de muita gente. 

Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2017, a área onde vivem 130 mil pessoas recebeu mais de 23 mil militares de diversas regiões do país ao longo de 15 meses. O contingente era constantemente renovado, e o efetivo variou entre dois mil e três mil soldados, ocupando a favela em caráter contínuo e permanente. 

Essa operação das Forças Armadas na Maré custou aos cofres públicos mais de R$ 1,5 milhão ao dia — verba que, para Diniz, poderia ter sido melhor aplicada. 

Ele acredita que “esse dinheiro poderia ter sido investido em saúde e educação. Não ficou legado nenhum dessa operação; militarizaram a rotina da população e não melhorara a vida de ninguém”. 

Luta pela educação

O ano de 2016 foi importante para a educação na Maré: o conjunto ganhou dois campi educacionais com 16 unidades, dentre espaços de desenvolvimento infantil e escolas de Ensino Fundamental. 

Mas para Edvaldo Lourenço, morador da Vila dos Pinheiros, a criação dos campi não foi uma solução. “Apesar do aumento do número de escolas, a educação piorou. Não há vagas para os alunos das creches e do segundo segmento do Ensino Fundamental”, reclama.

Marielle, presente!

O ano de 2016 também trouxe vitórias. Em sua primeira disputa eleitoral, Marielle Franco, cria da Maré, foi eleita vereadora na capital fluminense, a quinta mais votada. Foram dois anos de um mandato combativo, marcado pela mobilização popular e luta pela garantia dos direitos humanos. 

Sua trajetória foi interrompida em 2018, quando Marielle foi assassinada na noite do dia 14 de março. Até hoje, sua família, os moradores da Maré, organizações e instituições do Brasil e do exterior lutam para que os culpados e os mandantes sejam identificados e punidos. 

Entretanto, Marielle está presente em muitas lutas e ações que surgiram a partir do seu trabalho e luta. Jonatan Peixoto, educador social e morador da Nova Holanda, lembra com carinho da trajetória de Marielle Franco.

Ele recorda como “Marielle representava a esperança da juventude para colocar as favelas dentro do debate. Por ela, surgem as sementes, mulheres engajadas na luta. Também temos a vitória do governo Lula, mas do outro lado, há um governo estadual com uma política de extermínio da população preta e pobre”.

Pandemia na Maré

O ano de 2020 começou com o surgimento do coronavírus, que parou o mundo. Mesmo em escalas diferentes, os impactos do isolamento social atingiram toda a população da Maré e foi preciso criar ações para enfrentar esses desafios. Por meio da campanha Maré diz NÃO ao coronavírus, foram garantidas cestas básicas para quase 70 mil pessoas.

Para além do sofrimento e das incertezas, a pandemia da covid-19 trouxe também trabalho, solidariedade e criatividade. 

As ações do projeto Conexão Saúde: De olho na covid-19 levaram a uma redução de 46% na taxa de mortalidade semanal pela doença e um aumento de 23% nas notificações de casos de covid-19. 

O projeto foi fruto de uma parceria entre Redes da Maré, Conselho Comunitário de Manguinhos, Dados do Bem, SAS Brasil, Fiocruz e União Rio. As ações foram desenvolvidas entre o segundo semestre de 2020 e o primeiro semestre de 2021, e os resultados alcançados, consolidados em um estudo divulgado em 2023 no BMJ Global Health.

O médico Fernando Bozza, pesquisador do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas da Fundação Oswaldo Cruz (INI/Fiocruz) foi coordenador da pesquisa. Para ele, o sucesso da iniciativa foi fruto de uma intervenção de base comunitária. “O Conexão Saúde é, de alguma maneira, uma inovação do ponto de vista organizacional de como a academia, a sociedade civil organizada, o poder público e os incentivadores privados podem trabalhar juntos”, diz ele.

Pescadores sofrem com a poluição, que atinge redes e hélices dos barcos. Hoje resistem apenas quatro colônias na Maré – Foto: Affonso Dalua

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