Das palafitas ao asfalto, Seu Joaquim

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O paraibano chegou ao Rio em 1948 e acompanhou a construção da Maré

Felipe Rebouças em 05/05/2018, atualizado em 24/04/2021.

“Era ele que erguia casas, onde antes só havia chão .Como um pássaro sem asas, ele subia com as casas, que lhe brotavam da mão”.

Quando a maré cheia inquietava a todos, quando caranguejos e humanos dividiam o mesmo espaço, desde esse tempo Joaquim Severino da Silva, de 87 anos, faz parte da Maré. Aos 17 anos, em 1948, migrou de Mamanguape, cidade no interior da Paraíba, para o Rio de Janeiro, em busca de uma oportunidade de emprego na Construção Civil. Em sua terra natal, Joaquim deixou os avós que o criaram, um casal de irmãos e uma plantação de grãos.

Ao chegar ao Rio, em meados do século XX, encontrou um ambiente de desenvolvimento urbano, às vésperas da Copa de 1950. Também viu duas pistas recém-inauguradas, cortando as Zonas Norte e Oeste da cidade, a Avenida Brasil. Pela Avenida, Joaquim chegou à Maré e foi atrás de João Gordo, figura importante para os retirantes que chegavam. “Todo nordestino que vinha tinha seu endereço e procurava por ele”, contou Seu Joaquim.

O paraibano conseguiu emprego numa Construtora, em São Cristóvão; também colaborou na construção de palafitas: “quando a maré enchia, a gente tinha de se ajeitar para não se molhar muito”, relembrou. Mas depois de dois anos dormindo de forma improvisada, a saudade do Nordeste bateu e o aventureiro retornou a Mamanguape, próximo de completar 20 anos de idade, em 1950.

De volta ao aconchego

Na cidade de origem, Joaquim conheceu Luzia. No dia 19/02/1956 eles se casaram. Tiveram três filhos: duas meninas e um menino. Depois de uma década na calmaria, Joaquim decidiu retornar ao Sul. Em junho de 1961, 13 anos depois, retornou ao Rio de Janeiro, sem esposa e filhos, e se deparou com uma Maré que mudava rapidamente. Ele seguiu trabalhando como pedreiro em algumas regiões da cidade, mas nunca abandonou os serviços na Maré. As comunidades do Parque Maré, Morro do Timbau e Baixa do Sapateiro, ocupadas e instituídas durante a primeira passagem de Joaquim pelo Rio, já estavam consolidadas. Parque Rubens Vaz e Parque União eram novidades. E a extinção das palafitas era questão de tempo na medida em que os caminhões carregados de terra eram mobilizados pelos moradores da Avenida em direção ao mangue. “Começamos a aterrar e subir os barracos nas ruas Oito, Oliveira, Beira-Mar e Nova”, conta, entusiasmado.

Joaquim conseguiu dinheiro para alugar uma casa em Cordovil e comprar quatro passagens de Mamanguape para o Rio de Janeiro. Luzia e os filhos vieram se aventurar no Sul. O País passava por um período desenvolvimentista, caracterizado pelas grandes obras, que prometiam emprego e mais mobilidade nos centros urbanos, especialmente nas capitais do Sudeste. Diversas favelas do Rio sofreram remoções, deslocamentos forçados e um incêndio – até hoje não explicado. A favela da Catacumba, em 1967, foi devastada pelo fogo, onde hoje é um parque público.

Nesse contexto, Seu Joaquim e milhares de pessoas buscaram refúgio em núcleos populares de habitação, sobretudo aqueles em expansão, como era justamente o caso da Maré, na década de 1960. A população das favelas no Rio cresceu exponencialmente e a família de Seu Joaquim e Dona Luzia acompanhou todo o processo.

 De volta à Maré, pra ficar

Após passar alguns meses em Cordovil, a família mudou-se novamente para a Maré. O Distrito da Nova Holanda foi aterrado durante o Governo Carlos Lacerda, que conduziu um projeto de conjuntos habitacionais, entre os quais a Cidade de Deus, Vila Aliança, Vila Kennedy e Cidade Alta.

Na Maré, a família se mantém até hoje; ganhou mais sete filhos, que geraram 25 netos, 26 bisnetos e quatro tataranetos. Ao todo são 65 pessoas, além do casal, e 62 anos de casamento de Dona Luzia e Seu Joaquim. “A Nova Holanda é um canto bom de viver, aqui é muito tranquilo, ninguém perturba ninguém, ninguém rouba ninguém (..) Todos os meus filhos estudaram aqui e, graças a Deus, estão todos formados”.

A história de Seu Joaquim nos faz refletir sobre o Rio de Janeiro do século passado, em que estão as raízes dos problemas vividos hoje. Segundo ele, “analfabeto é quem não sabe o que aconteceu, o que está acontecendo e o que pode acontecer no futuro”.

Ao longo de todas as gestões, a política de urbanização e modernização sempre seguiu uma linha: tratar a parcela mais pobre da população como um problema que se deve varrer para debaixo do tapete. Hoje, Seu Joaquim trabalha num armazém, no 1º andar de sua casa, além de atuar como pastor, às terças, quintas e domingos, na Rua 7 de Março. Quando perguntado como conseguiu tudo o que tem na vida, ele responde com serenidade: “evite falar muito, fale pouco; evite querer enxergar tudo, enxergue o que é necessário; e ouça bastante”.

Seu Joaquim morreu aos 90 anos,em 24 de abril de 2021, em decorrência de complicações de uma pneumonia bacteriana.

Foto: Bira

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