Doces e resistência comunitária: a força da tradição de Cosme e Damião na Maré

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Tradição afro-católica lembra a força das ações de mobilização para a construção e memória da Maré

Por Millena Ventura

Edição #164 – Jornal Impresso do Maré de Notícias

Iniciado em 1979, o projeto visava eliminar habitações de risco em favelas situadas à beira da Avenida Brasil. Apesar do pouco investimento do Estado, a titularidade foi resultado de uma resposta comunitária às necessidades que o poder público vinha ignorando desde o início da ocupação da área, intensificada pela chegada de famílias removidas: da Favela do Esqueleto, do Morro da Formiga, do Morro do Querosene, da Praia do Pinto e de Macedo Sobrinho.

Isso levou à criação da Comissão de Defesa das Favelas da Maré (CODEFAM), organização que uniu associações de moradores e representantes da sociedade civil, visando acompanhar as obras e representar os interesses dos moradores nas negociações com o governo. Como parte do Projeto Rio, foram construídas as favelas Vila do João e Conjunto Esperança (1982), Vila do Pinheiro (1983) e Conjunto Pinheiro (1986).

Afro Catolicismo

Por consciência ou não, os resultados de ações de mobilização se encontraram no calendário com outra data comunitária importante, comemorado no dia anterior à entrega dos títulos de propriedade: o Dia de São Cosme e São Damião, celebrado em 27 de setembro. 

A tradição dos santos gêmeos, embora de origem religiosa, está profundamente enraizada no imaginário carioca como um dia de dedicação e cuidado com as crianças. Introduzido pelos portugueses, o culto a São Cosme e São Damião se misturou com elementos do sincretismo religioso, sendo associados aos Erês na umbanda e aos Ibejis no candomblé. Cosme e Damião, cujos nomes originais eram Acta e Passio, foram médicos que atendiam gratuitamente os mais pobres na Egea, tornando-se mártires da fé e, posteriormente, santificados.

Devido à diversidade regional, as celebrações variam entre os estados: na Bahia, é comum oferecer caruru a crianças e adultos; em Pernambuco, celebra-se com danças populares; e no Rio de Janeiro, especialmente no subúrbio, a tradição é a distribuição de doces e brinquedos. 

 O dia 27 é alvo de questionamentos devido à reforma católica, que deslocou as homenagens para o dia 26 de setembro. Contudo, devido às tradições e ao sincretismo, especialmente com o candomblé, no Brasil, a data original foi mantida.  Por isso, Nei Lopes, intelectual especialista em cultura afro-brasileira e de diáspora, compreende a celebração como uma manifestação afro-católica, ou seja, agrega diferentes símbolos cristãos e de religiões de matriz africana.

Para Nei Lopes, dentro das linhas gerais em que se desenvolveu a religiosidade africana no Brasil e nas Américas, espíritos, entidades e orixás precisam ser cultuados, para que, felizes e satisfeitos, garantam aos vivos saúde, paz, estabilidade e desenvolvimento.

Continuidade

A resistência à mudança de data veio acompanhada da compreensão de que a entrega de doces tem um significado de tradição e memória, simbolizando a partilha, independentemente de motivações religiosas. 

Uma matéria do jornal Última Hora, na época das mobilizações, relatava que: além dos doces, era comum a oferta de sapatos, brinquedos, roupas e alimentos, impulsionada pela crise econômica dos anos 1980. Muitas vezes, a distribuição de doces envolvia famílias inteiras, seja por promessas ou  pelo desejo de alegrar as crianças. A preparação incluía desde a compra até o empacotamento dos doces, em alguns casos, resultando em festividades na entrega.

Beatriz Virgínia, moradora do Conjunto Esperança, recorda essa dinâmica de infância. Nos anos 2000, os pais dela distribuíam doces em cumprimento a uma promessa feita a São Cosme e Damião pela cura de uma doença, que a acometeu na infância, agravada pelas condições precárias da localidade conhecida como Kinder Ovo, na Vila dos Pinheiros. 

“Além dos doces, meu pai, que era gráfico, também distribuía revistas junto com os sacos. Economizávamos durante todo o ano para cumprir a promessa e nos juntávamos dias antes para preparar a doação”, lembra Beatriz. 

A família dela não tinha uma religião definida. Isso permitiu também que ela pudesse experimentar as festividades da data e lembrar com carinho das memórias de fartura de doces em casa, nos dias que seguiam o 27 de setembro. Apesar da promessa ter sido de apenas sete anos, a família entregou doces durante 13, pois havia um envolvimento com a celebração. 

Ludmylla Braga, moradora da Nova Holanda e secretária da Casa Preta da Maré, é outra que mantém a tradição, mesmo sem ligação religiosa. Em 2023, ela preparou um bolo confeitado com várias cores para celebrar a data e homenagear as crianças, motivada pela ação que foi feita no trabalho, no ano anterior. 

O bolo para ela é um elemento essencial para as festividades, juntamente com o guaraná. A entrega de doces faz parte da sua infância e ela quis manter  isso na vida adulta: “Era maravilhoso, criança gosta de doce!”.

Apesar da diminuição da distribuição de doces no dia de São Cosme e Damião, por diversos fatores, é possível ver ainda famílias e organizações da sociedade civil que entendem a importância da data para as crianças manterem a tradição. Assim,  preservando a identidade cultural, já que esta é de uma festa que está diretamente ligada à união para a partilha e das mobilizações de famílias, que se organizavam todo ano para dar para as crianças um setembro mais doce.

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