Do tradicional pique-pega às dancinhas do TikTok, brincadeiras da molecada carecem de espaços adequados para o lazer
Por Flavia Veloso
“Descalço e sem camisa ia eu por aí / No tempo de moleque só andava assim / O sol a pino e a gente a correr no quintal”. A letra da música Infância, do “rei do pagode”, Reinaldo, destaca suas memórias como uma criança de favela. A partir dos versos da canção, conseguimos imaginar as nossas próprias experiências dos dias de moleque, isso porque as brincadeiras, sem dúvida, deixam lembranças marcantes por toda a vida.
Mesmo que a tecnologia tenha mudado as brincadeiras que hoje divertem e entretêm as crianças, aquelas que preencheram a infância de gerações não caíram no esquecimento. Quem nunca ouviu falar de pique-pega, pique-esconde, pique-bandeira, amarelinha, queimado, morto-vivo… a lista é infinita, assim como a imaginação dos pequenos.
Do Conjunto Esperança a Marcílio Dias, é impossível não reparar nas vozes infantis preenchendo as ruas e praças todos os dias. Isso não é à toa: a população dos territórios é muito jovem. Os mareenses de 0 a 14 anos representam 24,5% do total de habitantes, segundo o Censo Maré 2020. Como muitas casas não têm espaço o suficiente para brincar, a rua vira quintal.
Quando quer improvisar um quintal, William “Raio de Sol” (a criança mareense mais famosa do TikTok) vai com a mãe, Laudiceia Fernandes (a Dinda Lau), para uma quadra próxima à sua casa ou uma rua escolhida por ela. Lá, ele brinca com seus primos e crianças vizinhas, sempre sob supervisão da mãe: “Eu falo para ele ter cuidado com motos e bicicletas, porque muitas pessoas não respeitam. Explico que ele tem que prestar atenção às pessoas que estão à volta dele, não se deixar influenciar e evitar confusões.”
‘Desenrola, bate, joga de ladinho!’
Com o desenvolvimento acelerado de novas tecnologias, as brincadeiras evoluíram e aproximaram parceiros. Se há quatro décadas circuitos de TV aproximavam jogadores de xadrez em diferentes partes do mundo, hoje é possível, via celulares e computadores, qualquer um compartilhar qualquer coisa de qualquer lugar, e rapidamente.
Um exemplo disso é o famoso adedonha (também conhecido como stop), que pode ser jogado, via sites na internet, por pessoas em qualquer lugar do planeta (se não contarmos com os ocupantes da Estação Espacial Internacional, em órbita da Terra). Isso sem falar nos jogos mais recentes que fazem a cabeça da molecada, como Free Fire, Minecraft, Fortnite e Roblox.
A tecnologia também derrubou o mito de que jogar videogame e mexer no celular são sinônimos de ficar parado: os jogos atuais funcionam à base de sensores de movimentos do corpo, como o popular Just Dance.
Dançar, aliás, virou atividade lúdica desde a febre das coreografias do TikTok que contagiou a criançada. A rede social foi a mais acessada pelo público de 9 a 17 anos de idade durante a pandemia. Os pequenos deixaram o sofá para encostar o smartphone em algum lugar e interagir com os vídeos, reproduzindo os passos de dança sozinhos ou em grupo.
Direito fundamental
O gestor e produtor cultural, arte-educador e conselheiro tutelar Carlos Marra vê como fundamental o acesso das crianças às tecnologias e suas inovações: “É necessário que usemos essas ferramentas não para promover a alienação do mundo, e sim para fomentar e fortalecer o desenvolvimento das nossas crianças e adolescentes, até mesmo para promover comportamentos de socialização, criatividade e subjetividade.”
O conselheiro tutelar ainda destaca que esse contato deve vir acompanhado da atenção, orientação e supervisão dos responsáveis, em todos os espaços e ambientes de ocupação infantojuvenis. É inegável que, embora as tecnologias tenham aberto um leque imenso de possibilidades, elas não substituem as brincadeiras tradicionais que estimulam o fazer, a coletividade e o exercício da cooperação, das práticas positivas e da ocupação da rua e de espaços públicos enquanto lugares de lazer e diversão.
Para Carlos Marra, inclusive, essa ocupação “afirma a importância de a gestão pública ofertar o melhor serviço possível, já que brincar é um direito estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e precisa ser proporcionado por todas as esferas”.
Espaços abandonados
Mesmo sendo um direito que deve ser garantido pelo Estado, não é isso que se vê na falta de cuidado de parques, praças, quadras e campos de futebol da Maré. Muitos locais se encontram abandonados, com brinquedos e aparelhos deteriorados, oferecendo risco a quem usa. Em vez de ser tarefa da Prefeitura, a manutenção desses espaços é feita por moradores, organizações locais e associações de bairro — e, mesmo assim, não é o suficiente.
O quadro se agrava quanto à acessibilidade e segurança de crianças com alguma deficiência. Juliana de Figueredo, mãe do Davi, que tem Transtorno do Espectro Autista (TEA), conta que levar o filho para brincar num espaço público dentro da Maré está cada vez mais difícil. “Falta segurança, manutenção e limpeza, e isso pode acarretar contato com objetos cortantes ou contaminados”, diz Juliana sobre os riscos aos quais o filho está exposto.
Segundo Carlos Marra, é necessário pressionar a gestão pública a partir da conscientização e mobilização dos moradores. Nesse processo, o protagonismo infantojuvenil pode garantir o cuidado da gestão pública com esses espaços, para que eles sejam acessíveis e seguros e proporcionem encontros que fortaleçam o desenvolvimento, a subjetividade, criatividade e sociabilidade das crianças.
Um chamado à brincadeira
É com esse protagonismo que o projeto Brinca Maré!, fruto do edital FOCA: Fomento à Cultura Carioca, está contando para revitalizar a Praça da Paz, que fica entre a Baixa do Sapateiro e a Nova Holanda. O local — que um dia foi tomado por lixo, já passou por uma reforma há alguns anos e hoje sofre com um novo quadro de abandono — ganhará uma cara nova até o fim deste mês.
O projeto está sendo desenvolvido com a participação ativa de crianças que frequentam a Lona da Maré e a Biblioteca Lima Barreto. O Brinca Maré! oferece oficinas aos pequenos, mas eles almejam mais: as crianças listaram o que querem ver na praça depois da reforma, como bancos, plantas, brinquedos e, principalmente, manutenção e limpeza do espaço.
A arquiteta Laura Taves, que também é artista, educadora e responsável por escrever o projeto – com apoio de Isabella Porto e João Rivera –,, conta que o motivo de escolher a Praça da Paz para receber essa revitalização é fruto da necessidade de ocupar o local, estigmatizado pela violência, com lazer para as crianças.
“A ideia é a gente trazer de volta o uso, insistir em certos espaços, não perder esse território para o lixo ou para outras funções que não são as deles. É mais uma tentativa de dar uso à função e, com o uso, fazer com que essa função permaneça, para que possa ser realmente uma praça, um lugar de brincar”, explica.