Em busca da cidadania negada

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Movimento de moradores, ONGs e associações de moradores se unem e fazem história ao ganharem uma Ação Civil Pública (ACP)

Maré de Notícias #98 – março de 2019

Por: Camille Ramos

A Maré inaugurou, no Rio de Janeiro, uma Ação Civil coletiva (Leia boxe O que é ACP?) na qual o governo do Estado precisa seguir um plano de segurança contra a violação de direitos humanos durante intervenções policiais dentro da comunidade. A medida, implementada em 2017, por enquanto, só estabelece limites aqui na Maré, mas é uma espécie de “projeto-piloto” que pode se estender para outras favelas. Foi a primeira vez que o Poder Judiciário exigiu que o Governo Estadual siga um plano de segurança específico para um local da cidade, com a criação de uma medida de redução de riscos e danos.

Um dia de terror

O ano de 2016 foi marcado por inúmeras operações policiais que mantinham um padrão de violação de direitos dentro da Maré, como troca de tiros durante a noite e em locais próximos a escolas. No dia 29 de junho daquele mesmo ano, aconteceu uma operação do Bope (Batalhão de Operações Especiais) e do Choque (Unidade da polícia especializada em controlar e dispersar multidões) nas favelas da Nova Holanda, Rubens Vaz, Parque Maré e Parque União, que deixou milhares de pessoas presas em instituições, comércio e casas. A Redes, por exemplo, abrigou um grupo de 200 crianças que estava realizando atividades na tarde daquela quarta-feira.

Após horas incessantes de tiroteio, um movimento de moradores, ONGs e presidentes de associações se uniu para denunciar a intervenção violenta que acontecia na comunidade durante o Plantão Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), no Centro da cidade. O grupo conseguiu, na Defensoria Pública, uma liminar judicial inédita, que determinou o fim imediato da operação e proibiu a realização de novas intervenções policiais no turno da noite. Após a liminar, a Defensoria moveu uma ação mais ampla, reunindo denúncias individuais de moradores e relatórios produzidos pela Redes da Maré, ONGs e ativistas do território, que resultou numa peça de 800 páginas apontando um padrão de conduta das polícias para que os direitos humanos não fossem mais violados dentro do território favelado.

Esse documento gerou a Ação que definiu procedimentos específicos para a atuação de policiais dentro da Maré e exigiu da Secretaria de Segurança do Estado, em até 180 dias, um plano de redução de riscos e danos em intervenções policiais. A ACP estabelece, entre outras, a presença obrigatória de ambulâncias durante as operações policiais nas 16 favelas do complexo e a implementação de equipamentos de vídeo, áudio e GPS em todas as viaturas das Polícias Civil e Militar do Estado.

Para Eliana Sousa Silva, fundadora da Redes da Maré, o processo de mobilização coletiva caracteriza a comunidade nos últimos anos. “Eu percebo que existe, aqui, uma perspectiva da busca de direitos muito forte, mas desde o princípio as lutas abordavam garantias a direitos básicos como água, luz e saneamento. Esse enfrentamento da violação de direito à segurança é algo que vem acontecendo nos últimos tempos dentro do território e a Redes, junto com outras instituições, vem pautando que a segurança também é um direito do morador de favela. E a aderência da comunidade favorece esse processo, sendo fundamental para conseguirmos efetivar, na Maré, o direito à segurança pública”, analisa.  

“Garantimos a lei, mas agora precisamos cobrar o cumprimento dela”

Desde a implementação da ACP, a cada entrada da polícia, a Redes da Maré organiza um relatório com dados sobre a operação e envia para a Defensoria e o Ministério Público (MP). Uma das responsáveis pela elaboração do documento é a coordenadora do Eixo de Segurança Pública da Redes, Lidiane Malanquini. Ela ressalta a importância da participação dos moradores para pressionar o cumprimento da ACP. “Apontar padrões de violações de direitos por meio de relatórios é mostrar que os casos não são uma exceção e, sim, um padrão de conduta. Reunir denúncias e provas de moradores pressiona o Estado a atuar com mais cuidado no nosso território”, afirma Lidiane.

A última pauta enviada ao MP foi sobre a proibição do uso de helicóptero como plataforma de tiro. O “caveirão voador”, como é conhecido pelos moradores, dispara tiros de cima para baixo. Até o fechamento desta Edição tínhamos a informação de que isso aconteceu, pelo menos, cinco vezes dentro da Maré. O processo foi rejeitado em primeira instância e encontra-se parado atualmente, aguardando o resultado do recurso de segunda instância, impetrado pela Defensoria Pública.

De acordo com o 3º Boletim de Segurança Pública da Maré,(referente a 2018, lançado em 21 de fevereiro e sua versão reduzida segue junto com esta Edição do Maré de Notícias), algumas medidas da ACP não estão sendo cumpridas. Este é o caso da operação que virou a madrugada no dia 6 de novembro, a falta de ambulância em algumas operações, tiroteios próximos a escolas e o monitoramento da frota policial. Para garantir o cumprimento das ações estabelecidas, Eliana Sousa reforça a importância de manter o acompanhamento das operações para denunciar as irregularidades cometidas. “A ação não se efetivou da maneira como foi conquistada, mas trouxe algumas preocupações para alguns agentes do Estado de como atuar ali. Temos usado a medida politicamente, para chamar a atenção para algo que foi uma conquista no campo jurídico, mas ainda precisamos fazer isso de forma efetiva. A conquista da ACP foi um ganho expressivo, mas no nosso País, ter a lei não é garantia do cumprimento dela, então a gente segue monitorando e cobrando”. Mas certamente um passo muito importante foi dado com a conquista da ACP, principalmente no sentido de estabelecer, no território, uma conquista coletiva que está no início do processo”, diz.

Para Eliana, a população da Maré deve se envolver com a causa. “Vejo a ACP como um ganho, mas também como uma medida que precisa ser pensada e efetivada. Precisamos continuar mobilizando a população e as organizações para chamar a atenção para o que não foi cumprido. Temos, então, um papel de longo prazo para continuar pensando que outras incidências políticas faremos nesse campo”, finaliza.

O que é ACP?

 A Ação Civil Pública é um instrumento jurídico que representa um direito coletivo e parte da mobilização de milhares ou milhões de pessoas que têm problemas parecidos e que necessitam assegurar direitos previstos na nossa Constituição. Então, em vez de cada cidadão abrir um processo administrativo individualmente, são colhidas informações e provas que denunciam um padrão de violação e que resultam em medidas obrigatórias que precisam ser seguidas para a garantia do bem comum. A ACP busca reprimir ou prevenir, entre outras coisas, danos ao meio ambiente, ao consumidor, ao patrimônio público, aos bens e direitos de valor artístico, à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos e religiosos, podendo condenar em multa ou obrigando a cumprir determinados tipos de ações. No caso da Maré, a ACP veio para garantir a não violação dos direitos dos moradores e do território. 

A ACP da Maré estabeleceu que:

• a Secretaria de Segurança do Estado definisse um plano de redução de danos para o enfrentamento das violações de direitos humanos na Maré;

• fossem instaladas câmeras de vídeo e de áudio e implantando o sistema de localização por satélite (GPS) nas viaturas;

• uma ambulância fique de plantão na Maré nos dias de operação;

• mandados de busca e apreensão só devam ser cumpridos no período diurno;

• fosse feita fiscalização da atuação dos policiais durante as operações, em tempo real, por meio do monitoramento das câmeras nas viaturas.

Você pode denunciar abusos policiais por meio do Maré de Direitos, na Redes da Maré, ou pelo nosso WhatsApp (21) 99924-6462.

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