Era uma vez

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Por Marcello Escorel, em 27/07/2021 às 10h10

“Ó rei! Estas lendas estão cheias de significado misterioso que somente os iniciados conhecem.” Sherazade 

Gosto muito de livros, mas muito mesmo. Tanto que um dos meus sonhos de consumo, que infelizmente ainda não realizei e nem sei se o farei, era poder reservar um aposento da casa só para eles. Estantes altas com escadinha acoplada para facilitar que os encontrasse quando desejasse.

 Nas diversas mudanças de casa que vivi, ao contrário, tive que me separar de vários ‘companheiros’ alguns dos quais ainda lembro com muitas saudades. Mas uma coleção de oito volumes me acompanhou em todas, desde a década de 60 e dela não consigo me desfazer: os “Contos e Lendas dos irmãos Grimm”.

Em verdade, esses contos não são de autoria dos irmãos Jacob e Wilhelm mas foram coletados por eles num trabalho cuidadoso de campo em todas as regiões rurais da Alemanha, passados oralmente de pais para filhos em um sem número de gerações. O exemplo dos irmãos floresceu e diversos estudiosos lhes seguiram o exemplo em várias nações do Ocidente compilando as estórias de suas nacionalidades a partir do início do século XIX.  Já no Oriente, mais introvertido e espiritualizado, múltiplas coletâneas já circulavam há séculos sendo a mais conhecida a das “Mil e uma noites”.

Registra-se a presença dos contos de fada em todas as culturas e em todas as partes da terra. Sua existência é tão antiga quanto a humanidade e sua persistência deve-se à tradição dos contadores que eram solicitados em ocasiões de festas para nos entreter ao redor das fogueiras, em pavilhões enfeitados ou sob luz da lua cheia. Sua perenidade não se deve apenas a sua capacidade de nos divertir, mas é, principalmente, resultado daquilo que compartilham com os mitos e os sonhos: a linguagem simbólica.

Uma característica comum a todos as narrativas é a sobreposição de dois mundos: o da realidade cotidiana comum e um mundo mágico onde existem animais que falam, bruxas, feiticeiros, gênios, gnomos, grifos, cavalos alados, centauros, objetos encantados, e muitas outras maravilhas. Os contos de fada tentam integrar estes dois universos que nada mais são que nossa consciência e o inconsciente coletivo, ativado para compensar nossas deficiências e nos levar à plenitude da vida. Essa função natural que nos arrasta para nosso centro obrigando-nos a assumir nosso destino e nosso propósito na vida, Jung chamou de “individuação”.

Quando a vida em nós se estanca, perde o colorido e nos vemos sem ânimo e perdidos é sinal de que perdemos contato com nosso mundo interior. Nestas horas em que nos encontramos num beco sem saída, quando já utilizamos todos os métodos e artifícios conhecidos da consciência para superar sem sucesso um impasse, é que os símbolos surgem para nos revelar um novo caminho.

Reparem como a grande parte dos heróis desses contos são figuras simplórias, pobres, subestimadas e até mesmo tolas. Isto porque personificam facetas de nós mesmos a que não damos valor ou que não desenvolvemos durante nossa vida.

Assim como os sonhos, os contos de fada agem de forma compensatória, sinalizando o quanto estamos estagnados numa visão de mundo e numa atuação que necessita de mudança para que nossa alma volte a florescer. Seu efeito é terapêutico. Na medicina hindu, por exemplo, existe um método de cura, para pessoas mentalmente desorientadas, que consiste em oferecer um conto de fadas com a problemática do paciente para que eles meditem sobre ele. Esses contos têm um valor curativo para a formação e configuração do mundo interior humano.

Outro exemplo vem de Hans Dieckmann, um terapeuta junguiano. Ele usa um método similar ao indiano quando se debruça sobre os contos favoritos de cada paciente para que sejam pormenorizadamente interpretados à luz da psicologia analítica. Os símbolos e a jornada das personagens acabam fornecendo “insights” (iluminações) que permitem aos analisandos entenderem a raiz de seus problemas e o caminho para se libertarem.

O triste é que estamos perdendo esse manancial de sabedoria arcaica. Na sociedade moderna não encontramos tempo para contar ou ouvir essas narrativas maravilhosas. Não há tempo para respirar na incansável luta do dia a dia. Os aparelhos eletrônicos e as mídias digitais ocupam cada vez mais as nossas horas despertas. Não existe pausa para a reflexão e vamos pouco a pouco enrijecendo nossas atitudes em padrões repetitivos e viciantes.

E o absurdo não para aí. Em nome de uma pretensa moralidade assistimos à amputação dos contos de fada de todos os seus elementos cruéis, violentos, escabrosos e horrendos com a desculpa de pouparem nossas crianças de qualquer temática mais sombria. O que é na verdade um erro crasso. As crianças, e por que não, os adultos, ficam mais atentos e alertas para o lado obscuro da vida e saem fortalecidos quando são convidados, ou mesmo intimados, a quebrarem as redomas de proteção que os impedem de assumir seus próprios riscos e seu destino.

Os contos de fada originais narram a vida de nossa alma, retratam os momentos de crise pelos quais passamos como seres humanos. A passagem da infância para o mundo adulto, a descoberta da sexualidade na puberdade, os conflitos da maturidade, a aceitação do crepúsculo da vida e tudo o que você consiga imaginar sobre as encruzilhadas da jornada da humanidade. A transformação dessas histórias em versões açucaradas desrespeita uma tradição milenar e lança uma pátina sobre o espelho que reflete tudo o que fomos, somos e seremos.

Era uma vez, e se Deus quiser assim sempre será.

Marcello Escorel é ator e diretor de teatro há mais de 40 anos. Paralelamente a sua carreira artística estuda de maneira autodidata, desde a adolescência, mitologia, história das religiões e a psicologia analítica de Carl Gustav Jung

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