Congresso internacional reuniu especialistas, moradores da Maré e interessados no tema para refletir sobre o lugar da periferia no combate aos efeitos da violência armada
Por Ana Bia**, Andrezza Paulo**, Hélio Euclides, Luiz Menezes** e Tamyres Matos
Sons de helicóptero, sobressalto, medo. Mais um dia de operação. Moradores das favelas Parque União, Nova Holanda, Parque Maré e Rubens Vaz foram acordados — mais uma vez — na madrugada do dia 11 de agosto sob a tensão de uma incursão policial. Poucas horas depois, iniciava-se o segundo dia do 1° Congresso Internacional Falando sobre Segurança Pública. Teoria e vivência se encontraram no maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro para discutir o protagonismo da periferia nesse debate.
A proposta do congresso, que teve como tema “Segurança pública e violências: contradições, controle social e desafios para garantia de direitos estruturantes”, foi a de fazer chegar as reflexões dos especialistas aos moradores da Maré e demais interessados no tema. Foram três dias de rodas de conversa, partilhas e apresentações, ocorridos no Centro de Artes da Maré (CAM).
A produção de dados sobre a violência armada nas favelas nasceu da necessidade de quantificar e mensurar as informações não divulgadas pelo Estado. “Ao produzir dados e esses conhecimentos, a gente consegue colocar a favela como sujeito da sua própria história”, diz Pedro Paulo dos Santos, coordenador de pesquisa do LabJaca.
Camila Barros, coordenadora do Projeto De Olho na Maré, abordou a importância dos dados, frutos do trabalho que desenvolve na Redes da Maré. Há seis anos, o projeto coleta e sistematiza informações sobre as situações de violência no território mareense, principalmente em dias de conflitos armados decorrentes da atual política de segurança pública do estado do Rio. “O projeto De Olho na Maré surgiu da inquietação de não ter esses dados. Sem eles, a gente não consegue propor políticas alternativas para esse território”, explica.
Crianças e adolescentes debatem segurança pública
“Muito tiro, pouca aula e muita operação. Sem aula e muitas pessoas mortas. Fim”. Esse é o relato de uma criança das 1,5 mil que fizeram as cartas entregues ao Tribunal de Justiça (TJ-RJ). As crianças pediam a volta da Ação Civil Pública, que contempla direitos e o reconhece a importância das vidas das pessoas que moram na Maré.
Algumas dessas cartas estavam expostas no Congresso Falando sobre Segurança Pública com Crianças e Adolescentes da Maré evento ocorrido antes da abertura do congresso principal com a participação de crianças e adolescentes. Os jovens participaram de diversas dinâmicas e, inclusive, se dividiram em cinco grupos para discutir cidadania e organizar propostas de segurança pública para a Maré. O abertura do congresso contou ainda com uma passeata pelas ruas da Maré.
O desejo de um pleito eleitoral que tenha um olhar para a favela no campo da segurança pública foi unanimidade entre os participantes do evento. “No abraço da minha mãe é o lugar onde eu mais me sinto segura, porque aqui na Maré não temos segurança para nada’’, resume Vitória Machado, aluna do Preparatório da Redes da Maré.
Naturalização da violência
Participante da roda de conversa O Contexto da Violência Armada na Maré, a assistente social Fernanda Viana, de 41 anos, acredita que a realização do evento foi um grande passo para mudar a estrutura a qual a população periférica está submetida. Mãe, preta e moradora da Maré, Fernanda ressalta a incidência precoce da política de (in)segurança pública nos corpos pretos.
“Vejo uma estrutura que precisa de muito engajamento político dos cidadãos. Porque essa é uma política que, diferentemente das outras, não foi embasada pela participação popular. Aqui no congresso somos nós a falar, a produzir. A violência não nasce aqui, não somos pessoas violentas. Somos pessoas violentadas”, desabafa.
Consenso entre os participantes dos três dias de evento, o protagonismo do favelado é essencial para o avanço do debate. Para o coordenador do LabJaca, a produção de conteúdos governamentais e acadêmicos é feita a partir do olhar de fora da periferia, colocando-a sempre no lugar de objeto.
“A favela é pesquisada. É muito comum ter pessoas que vem até aqui, para suas produções, mas só enxergam a favela desse jeito, como lugar de coleta de conhecimento e não de contribuição, de produção. É sempre objeto, e como tal acaba não recebendo nada de volta para melhorar a realidade desses territórios”, analisou.
Para Pedro Paulo, conhecimento não se dá somente na academia. A produção dos dados precisa estar alinhada com as iniciativas sociais e com a vivência, e voltada para quem realmente está nas favelas. Esse olhar também é conhecimento e pode ser produzido em cada casa, por cada morador da favela. No contexto de violência, Pedro Paulo dos Santos é incisivo. “Quem não pauta, é pautado. Construir esse conhecimento é produzir política. Estamos preocupados em incidir na realidade social e favelada”, afirma.
A mareense Camila Barros acredita que o morador de favela não tem nem mesmo o direito de planejar sua própria vida no cotidiano, pois pode haver uma operação policial em seu caminho: “Se não se posiciona, não disputa essa narrativa, a gente vai ser pautado pela narrativa que sempre foi trazida para a favela nessas ações: a do crime.”
Fundador e ex-diretor da Redes da Maré, o sociólogo Edson Diniz ressaltou a importância da realização de eventos como esse na construção de outra sociedade possível, reiterando a urgência de não naturalizar as violações de direitos nas favelas. “As chacinas nas favelas continuam acontecendo porque continuamos a normalizá-las. A favela sempre foi estigmatizada, vista como o lugar do crime. Precisamos produzir conhecimento para acabarmos com esses estigmas”, conclui.
Vidas impactadas
Entre 2017 e 2021 aconteceram 132 operações policiais e 114 confrontos entre grupos armados no conjunto de 16 favelas da Maré. Juntos, estes 246 momentos de violência armada causaram 157 mortes e interromperam por 94 dias o funcionamento das unidades de saúde e, por 70 dias, as aulas nas escolas da Maré.
O ativista Raul Santiago, cria do Complexo do Alemão, analisa como o acesso à segurança pública não é pensado para moradores de favelas e periferias: “Na prática, somos vistos como inimigos da segurança. A segurança pública não chega para a gente. Quando ela entra na favela é na figura de um fuzil e de um carro blindado da polícia”.
Independentemente de decisões judiciais, a rotina de operações policiais segue seu curso, sendo a chamada “guerra às drogas” o principal motivo utilizado pelas polícias para a violação de direitos nos territórios periféricos. “A ‘guerra às drogas’ é a manutenção do racismo. Guerra está para os pretos, pobres e periféricos. Já as drogas estão para todos”, avalia.
E ele vai além: “Bala perdida é uma falácia para reduzir os homicídios nas favelas.” Santiago chama atenção para a rotina de pais e mães que vivem nas favelas: “Eu enquanto pai tenho que treinar meus filhos a se proteger de tiroteio. Isso é a coisa mais absurda”, revolta-se.
Saber da favela
A pesquisadora Carolina Christoph Grillo, coordenadora do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI-UFF), percebeu que a polícia se recusava a quantificar as operações policiais e viu que precisava produzir, dentro da esfera acadêmica, os dados que o Estado não entregava.
“O grupo que pesquisa a violência letal das operações policiais e as chacinas, e ainda monitora e avalia as ações da polícia e de grupos armados, encontrou resistência inicial na academia para abordar as vertentes do tema. A articulação com movimentos sociais e instituições ligadas à população periférica e sociedade civil foi um grande ganho”, avalia.
Para a doutora em antropologia, os dados produzidos passaram a responder perguntas que moradores de favela e movimentos sociais sempre fizeram, além de, através do acúmulo desse conhecimento, impactar o debate público e disputar relevância com a imprensa. “É gratificante poder discutir estes temas nas favelas e nas universidades”, revela.
O ingresso de alunos negros e favelados no meio acadêmico possibilitou o aumento de pautas como o racismo e as violências vividas nos territórios periféricos. “Quando democratizam o acesso à universidade pública, a gente socializa as questões dignas de debate público. A partir daí conseguimos avançar e colocar a universidade pública a serviço do interesse público”, conclui.
*Texto, publicado na edição de setembro do Maré de Notícias, recupera cobertura realizada pelo site nos dias do evento
**Comunicadores do Laboratório de Formação em Jornalismo do Maré de Notícias