Funk: som de preto, de favelado e criminalizado

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Desde a sua criação, o ritmo é associado ao crime, junto a outras manifestações culturais negras

Maré de Notícias #15 – agosto de 2020

Andressa Cabral Botelho

No mês de julho, a comunidade funkeira viu duas situações comuns aconteceram: o MC Poze do Rodo foi acusado de associação ao tráfico e o DJ Rennan da Penha, acusado anteriormente de associação ao tráfico, foi impedido pela Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha de realizar uma live na favela. Infelizmente, a criminalização do funk é um assunto antigo e recorrente, desde antes dos nomes da nova geração do funk nascerem. Poze e Rennan entram para a lista de nomes associados ao crime, como os MCs Junior, Leonardo e Smith, por exemplo, mostrando que o ritmo, assim como outras manifestações artísticas populares ligadas ao povo preto, desde sempre sofre com a discriminação social e racial. Ao longo dos anos, diversas foram as leis para criminalizar aqueles que eram envolvidos com música.

Na virada dos séculos XIX e XX aconteceu com o samba e a capoeira. Aqueles que fossem vistos com um pandeiro nas mãos poderiam ser considerados vadios e enquadrados no artigo nº 374 do Decreto nº 847, do Código Penal de 1890, e ficar presos por até três meses. Era considerado vadio aquele que perambulava pelas ruas sem comprovar emprego fixo, e um dos critérios para avaliar a vadiagem era a aparência de criminoso, comumente associada à raça negra. “Nesse cenário, tudo o que advém do corpo preto deve ser combatido pelo Estado, e o Direito Penal é (talvez) o principal mecanismo capaz de permitir ao Estado a contenção dos corpos pretos ao longo da história, ocasionando a criminalização da capoeira, da vadiagem, do samba, do funk, e das produções musicais pretas”, observou a advogada Cássia Dias.

Em 2017, chegou ao Senado a Sugestão nº 17, que tinha com proposta tornar o funk um crime contra a saúde pública de crianças, adolescentes e a família. O empresário paulista Marcelo Alonso, autor da sugestão, alegou que o funk era uma “falsa cultura” e que atendia aos interesses de criminosos. Apesar de receber apoio de mais de 20 mil pessoas, a sugestão de lei não foi aprovada pelo Senado, por cercear a liberdade de manifestação cultural.

Mesmo com mais de 100 anos de diferença entre o Decreto nº 847 e a Sugestão nº 17/2017, é possível notar que o alvo continua sendo o mesmo: manifestações ligadas a negros, pobres e moradores de regiões populares da cidade. “Desde que as pessoas pretas se tornaram objetos, todas as suas particularidades foram usurpadas, com especial atenção para o aspecto cultural, que além de união traz consigo lutas políticas”, destacou Cássia.

DJ Renan Valle é um dos residentes do Baile da PU – Foto: Douglas Lopes

Quem pode fazer funk?

Em julho, o deputado estadual Rodrigo Amorim lançou um projeto de lei que visa transformar o funk em patrimônio cultural do Estado, mas em uma rede social, ele falou que desconsiderava o funk de comunidade como parte desse patrimônio. “Se ele excluiu a favela, então não tem como nós, moradores e funkeiros, sermos beneficiados [com a lei]. Os bailes financiam muitos moradores, geram empregos, porque quem é morador da comunidade vai gastar aqui. Quem é de fora vai vir para gastar aqui. Então, o capital fica circulando dentro da comunidade”, avaliou Renan Valle, DJ residente do Baile da PU, no Parque União.

Renan e Cássia concordam que a criminalização do ritmo acontece também porque o baile na favela não gera renda para o estado ou município. Há eventos de funk em casas de show, com ingressos e bebidas caras, que não são proibidos ou criminalizados como os bailes. “O grande aspecto criminalizador do ritmo se relaciona à raça e à classe dos agentes culturais envolvidos”, observou a advogada.

Enquanto muitos enxergam o ritmo como um problema, Renan vê como um retrato de sua vida: “O funk sofre junto comigo diariamente, sendo criticado e sofrendo preconceito. O que seria de mim se não fosse o funk?”, conclui.

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