Homens trans da Maré promovem inclusão de pessoas LGBTQIAPN+ no esporte

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Rahzel Alec

O esporte é uma grande ferramenta de transformação dentro da favela e quem é cria sempre tem uma história para contar sobre amigos, primos e conhecidos que encontraram nas práticas esportivas uma nova possibilidade de futuro, a realização de sonhos e mobilidade social. 

Práticas como Queimado das LGBTQIA+, o Futzin dos crias, o rolezinho de bike pela favela e os projetos de artes marciais que estão por toda a Maré são essenciais para a qualidade de vida do favelado e rompem com a ideia de que viver em um complexo de favelas é apenas sobreviver a violência das incursões policiais. Para pessoas LGBTQIAPN+, as práticas esportivas ainda caminham ao lado do preconceito, mas por meio da luta pela liberdade de ser quem se é em todos os lugares, nascem também referências no enfrentamento a todo tipo de preconceito, dentro e fora do esporte.

Cria e medalhista

Marcelo Silva tem 28 anos, é professor de educação física, cria da Vila dos Pinheiros. Com 25 anos de dedicação ao esporte aquático, sua jornada como nadador teve início aos 3 anos, quando teve seu entusiasmo despertado ao conhecer a piscina do Colégio Pedro II. Desde então, Marcelo passou sua infância e adolescência nas águas, fazendo parte de espaços como o Clube Vasco da Gama, em São Cristóvão.

Antes de assumir sua identidade como homem trans, Marcelo competiu em inúmeros campeonatos de natação, sendo federado pela Federação Aquática do Rio de Janeiro (FARJ). Sua trajetória no esporte feminino foi marcada por um crescimento pessoal significativo, embora o temor da transfobia o assombrasse, o que o levou a ponderar sobre revelar sua verdadeira identidade.

“Eu tinha muito medo, porque sabia que se eu transicionasse não iria conseguir nadar, não conseguiria competir”, revela Marcelo.

Mar aberto

Diante das incertezas e do panorama do esporte que ainda é predominantemente constituído por homens cis e heterossexuais, Marcelo, inspirado por outros atletas transgêneros, decidiu encarar sua verdade. Sua última competição na categoria feminina ocorreu em março de 2020, antes do início da pandemia de Covid-19.

Após o período de isolamento social, Marcelo percebeu suas inquietações em relação à transfobia nas piscinas e buscou alternativas. Foi então que direcionou sua atenção para o nado em águas abertas, explorando as praias da Zona Sul. Essa mudança fez toda a diferença, proporcionando-lhe um ambiente mais acolhedor e permitindo-lhe sentir-se mais à vontade.

Abraçando a mudança

Durante sua pós-graduação em Educação Física na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Marcelo identificou o viés preconceituoso relacionado às questões de gênero dentro do curso. Essa percepção o motivou a pesquisar sobre a relação das instituições de ensino com o respeito à identidade de gênero, aplicação do nome social e inclusão de mulheres.

“Os educadores precisam de capacitação para abordar as pessoas trans. O banheiro ainda é uma dificuldade, mesmo sendo uma coisa muito simples, ainda é um tabu. Às vezes nem são os professores, mas é a própria coordenação da escola que não permite que troque o nome do aluno que não é retificado na chamada. Depende do professor querer chamar pelo nome social ou não.”

Hoje, como professor de natação em águas abertas, Marcelo ainda enfrenta desafios diários relacionados ao preconceito. No entanto, isso não o impede de construir uma carreira em que seja respeitado tanto dentro quanto fora da água.

“Estamos na Zona Norte, bem longe da praia. Muitas pessoas daqui da comunidade têm medo ou desconhecimento sobre nadar. Não é só pular onda e levar caixote. É muito interessante quando eu converso com os meus vizinhos, falo como é o mar, sobre correntes, sobre o vento, digo qual praia é melhor para curtir com as crianças, que não tem ondas grandes. É importante educar sobre o mar”, compartilha o nadador.

Novas conquistas

Em 2023, Marcelo celebrou uma grande conquista ao competir pela primeira vez na categoria masculina, garantindo o 4º lugar na competição. O compromisso de Marcelo em criar um ambiente mais inclusivo para pessoas trans no esporte continua inspirando outros indivíduos a perseguirem seus sonhos, independentemente das barreiras impostas pelo preconceito de gênero.

Futzin de respeito

Bernardo Barbosa tem 27 anos, nasceu na cidade de Fortaleza, no Ceará, e chegou na Maré junto da sua família aos 15 anos. Foi no CIEP Professor César Pernetta que o jovem se reaproximou do futebol, jogando com os colegas de turma. Bê, como é conhecido, conta que, quando ele era mais novo, seu pai, que fazia parte de um time de futebol em Fortaleza, o impedia de jogar com os meninos.

Ao chegar na Maré, o atleta diz que a favela o abraçou e que passou a enxergar o conjunto de favelas como uma cidade, com acesso a amigos, projetos e várias programações culturais. Ao se aproximar do Futzin dos crias, que acontecia nas quadras da escola, Bernardo compreendeu que o seu espaço também era ali e jogava “de cantinho”. Ainda assim, ele precisaria lidar com o machismo e outros preconceitos reproduzidos pelos colegas da sua idade.

Time inclusivo

Ao conhecer o Trans United FC, um time só para pessoas trans, o jovem, que é artista e barman, passou a se dedicar também ao futebol e se reconheceu com outros homens trans que também buscavam seu espaço no esporte. O Trans United FC foi criado em dezembro de 2021. Compromissado com a inclusão e o respeito de pessoas trans no futebol, os treinos acontecem aos domingos na Vila Olímpica do Engenhão. Com menos de 2 anos de criação, o time é bicampeão da Champions, organizada pela Ligay Nacional de Futebol, e foram campeões do Torneio de Futebol do Instituto dos Meninos Bons de Bola. 

“Hoje eu consigo lidar melhor com muitas questões machistas que ocorrem no dia a dia, tanto no trabalho quanto fora da Maré, até com familiares e em eventos. Eu me sinto mais confortável em falar sobre futebol, coisa que antigamente eu não conseguia. Antes de conhecer o Trans United, eu achava que era um espaço que eu nunca iria conseguir viver, nunca conseguiria fazer parte de um time de futebol ou até mesmo trocar ideia sobre esse assunto”, conta Bernardo.

Membro do time de futebol e cria da Maré, Bernardo passou a construir uma nova relação com a favela a partir da relação com os amigos que construiu por meio do futebol, passando a levar a galera para conhecer a Maré e a treinar na favela também, convidando outros homens trans, travestis e pessoas não binárias do território para conhecerem os jogos. Na luta contra o preconceito que vem também de alguns moradores, Bê conta que, junto do time, têm pensado as melhores estratégias para inclusão de crias trans no esporte.

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