Maré de Notícias #87 – abril de 2018
Passado mais de um mês da assinatura do inédito decreto, entenda o que é e relembre um pouco o que já aconteceu
Maria Morganti
No dia 16 de fevereiro, os moradores da Maré, que assistiam TV ou estavam ouvindo notícias no rádio, e ficaram sabendo do decreto de intervenção federal, assinado pelo presidente Michel Temer, devem ter se lembrado do período no qual as Forças Armadas ocuparam o conjunto de favelas, entre abril de 2014 e junho de 2015,a imagem dos tanques de guerra e das roupas camufladas. Mas aquele anúncio, da sexta-feira após o Carnaval, feito na hora do almoço, vai muito mais além das nossas memórias.
A intervenção federal deste ano, é a primeira, desde a Constituição de 1988. Quem tem menos de 30 anos, nunca viu nada parecido. Diferentemente do período pré-Copa do Mundo e Olimpíadas, em que os homens das Forças Armadas estavam na Maré para realizar a “Operação São Francisco”, regulada pelo dispositivo da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), agora a intervenção federal transfere os poderes do governador, relacionados à Segurança pública, para o interventor.
Garantia da Lei e da Ordem – GLO
Em geral, uma GLO autoriza apenas uma atuação pontual, de mais ou menos tempo, de ajuda das Forças Armadas à Segurança pública de uma cidade ou Estado. Um morador que preferiu ter a identidade preservada, diz que a presença do Exército em 2014 não resolveu nada. “A única coisa é que não andavam armados pela rua, mas todo dia davam tiros, todo dia tinha uma confusão. E depois que eles foram embora tudo voltou a ser como era antes”, contou.
A intervenção federal é autorizada pelo Congresso Nacional (Câmara e Senado Federal,) o que aconteceu em menos de cinco dias; transfere os poderes ao interventor e dá total autonomia sobre as Polícias Civil, Militar, Corpo de Bombeiros e a Secretaria de Administração Penitenciária. O indicado pelo presidente foi o comandante Militar do Leste, general Walter Souza Braga Netto.
Assim como em 2014, a intervenção federal tem data para acabar. A previsão é 31 de dezembro, quando as polícias e o próprio governador, poderão recuperar a autonomia.
Laboratório do medo
A população das favelas teme a intervenção. E existe uma razão. Desde o ano passado, está em vigor uma lei que transfere à Justiça Militar o julgamento de crimes cometidos por militares das Forças Armadas em missões como essa da Vila Kennedy, que é considerada pelo interventor como um laboratório.
No dia 23 de fevereiro, fuzileiros navais tiraram fotos de moradores ao lado das carteiras de identidade, uma espécie de fichamento preventivo, já que nenhum dos fotografados havia cometido qualquer ilícito. Os posts sobre a ação viralizaram nas redes sociais e provocou revolta em coletivos de favela como o Papo Reto, do Complexo do Alemão, que se manifestou no Facebook: “como nos pontos nazistas de controle de corpos, o Rio de Janeiro vira palco nacional da desigualdade racial, de classe, e todos os preconceitos que possam existir. Quero ver fazer um checkpoint [ponto de verificação] no túnel da Zona Sul ou da Barra, aí não peita! Só quer esculachar o pobre”.
Em discurso na 37ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU- Organização das Nações Unidas, em Genebra, na Suíça, no dia 7 de março, o alto comissário para Direitos Humanos, Zeid Ra’ad Al Hussein fez um alerta. “No Brasil, eu estou preocupado com a recente adoção de um decreto que dá às a Forças Armadas autoridade para combater o crime no Estado do Rio de Janeiro e coloca a polícia sob o comando do Exército”.
Segundo o historiador Carlos Fico, professor do IFCS, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da UFRJ, “o balanço da intervenção até agora é ‘muito ruim’, além de inconstitucional”. Ele afirma que a Constituição diz que a União não deve interferir nos Estados, exceto em casos de “grave comprometimento da ordem pública”. Carlos explica que não tinha acontecido nada excepcional, como transportes paralisados, falta de energia, e, sim, a continuidade de problemas crônicos. “Por isso que eu digo que além de inconstitucional, a intervenção é irresponsável, principalmente por não ter havido um planejamento que previsse ações de represália das organizações criminosas em resposta à intervenção”, concluiu.