Ir e vir, uma batalha diária

Data:

Maré de Notícias #92 – 03/09/2018

Para trabalhar ou se divertir, os moradores da Maré enfrentam dificuldades para se locomoverem

Maria Morganti

Por volta das 5h45 da manhã, o despertador toca na casa de Célia Silva, moradora do Parque União. Às 6h30, ela precisa estar com os pés na rua se quiser ir para o trabalho, em Ipanema, sentada em um dos ônibus da linha 483. Se chegar um pouco mais tarde na fila – que é grande – para pegar o ônibus, corre o risco de fazer a viagem em pé. De qualquer jeito, vai em um ônibus quebrado, velho e sem ar-condicionado. Se tiver chovendo, tudo piora. Para ninguém ficar encharcado, a janela precisa ser fechada. Não importa a quantidade de pessoas que estiverem amontoadas. Pra ficarem secos, precisam suportar o calor. A volta é ainda mais sacrificante: Célia precisa pegar dois ônibus. “Infelizmente é muito precário. Horrível. É uma batalha todos os dias, essa guerra aí”, desabafa a empregada doméstica que faz esse percurso cinco dias por semana, há nove anos.

                E nos fins de semana? “Fazer coisas perto de casa, que não precise pegar ônibus. A gente ainda tem uma vantagem que, aqui, na Maré, tem dança, teatro, vários programas. Tem vários projetos que ajudam nesse quesito, mas coisas fora da Maré são complicadas para ir. Ainda mais por causa da passagem, porque do jeito que o País está, a gente não está tendo nem condição de manter nossa comida, que dirá passeios assim, com passagem! Infelizmente a gente deixa de sair da Maré por causa do transporte público”, afirma Antônio Ferreira, estudante de 17 anos e morador da Nova Holanda.

 

A realidade de muitos

                A realidade de Célia e Antônio não é muito diferente dos outros quase 140 mil moradores do conjunto de favelas da Maré. Para 40% dessa população, a locomoção na cidade é considerada uma questão muito importante no seu dia a dia, segundo a pesquisa “1ª Amostra sobre Mobilidade Urbana na Maré”, realizada em 2014, fruto da parceria entre a Redes da Maré, o Observatório de Favelas e o Centro para Excelência e Inovação na Indústria Automóvel. Dos que responderam que ir e vir é uma questão “muito importante”, mais de 40% justificam que é por causa do deslocamento para trabalhar; e 16% atribuem a afirmação à necessidade, hábito ou direito de circular na cidade, ou de se deslocar para outros lugares.

Das pessoas que responderam que é pouco importante ou sem importância a locomoção na cidade no dia a dia, a maioria afirmou que o motivo da resposta é por não ter o costume de sair de casa ou da Maré. E desse total de pessoas que saem da Maré, quase 50% respondem que é só para ir trabalhar. Segundo o professor e especialista em mobilidade urbana do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ), Mauro Kleiman, apesar de o Rio de Janeiro ter vários modais presentes, não existe um planejamento que os integre e garanta o direito de mobilidade. “No Rio de Janeiro, especificamente, você tem todos os modais presentes: trens, metrôs, barcas, VLT, ônibus, vans, mototáxis. Apesar disso, não existe nenhum planejamento de integração entre eles e muito menos uma integração entre transportes e uma política de território, de planejamento”.

Haja sola de sapato

Com área de 4,3 km² e com mais de 5 km de extensão, correspondendo a quase 10% do total de uma das vias mais importantes da cidade, a Avenida Brasil, o bairro Maré pode ser considerado um exemplo dessa “falta de planejamento”. “A gente anda muito, ainda mais porque a gente não tem transporte. Os transportes que têm são vans e Kombis. Ônibus, nem pensar”, conta Adriana Ferreira, que mora na favela Marcílio Dias e trabalha na Academia Luta Pela Paz, na Nova Holanda e, por isso, faz o trajeto de uma favela para a outra todos os dias. Atualmente, não existe nenhuma linha de ônibus regular que garanta aos moradores o acesso ao direito de ir e vir entre as 16 favelas da Maré.  Outros ônibus que faziam o trajeto daqui para fora da Maré, como as linhas 330 da Empresa Ideal (com o percurso do Castelo, no Centro, até o Parque União), só passa na Maré uma vez ao dia. A grande maioria não existe mais, como o 320 – Praça XV / Parque União, 955 e 957, que faziam Maré/Alvorada, o 405, de Ramos ao Cosme Velho, e o 452, que saía da Maré com destino à Copacabana. Perguntada sobre o motivo da extinção das linhas, a Secretaria Municipal de Transporte afirmou que “as linhas 442 (Maré x Copacabana – via Santo Cristo), 443 (Maré x Leblon – via Central) e 444 (Maré x Copacabana – via Santa Bárbara) saem da Maré. Apenas a 442 e a 955 estão ativas. A linha 431C é intermunicipal. As demais não constam na relação de linhas ativas da SMTR”.

“Por motivo de segurança”

Quem pode e tenta pegar um táxi ou um Uber para sair de casa ou voltar para a favela, pode ouvir do motorista: “não entro em favela”. A Central 1746 de Atendimento ao Cidadão recebeu, no período de janeiro de 2017 a julho de 2018, o total de 879 solicitações e reclamações sobre táxis na cidade. Apesar de ser uma concessão pública, o que na teoria deveria garantir o acesso desse tipo de transporte à favela, segundo a Secretaria Municipal de Transportes eles “não têm normas que recomendem tráfego em comunidades. Os passageiros/usuários de táxi e aplicativos têm o direito de escolher que rota seguir. Lembrando que violência nas vias é questão de segurança pública”.

Ana Clara Alves, 19 anos, é moradora do Morro do Timbau e, num sábado à noite, pediu um Uber para transportá-la com a família. Ela estava na cabine policial da Linha Amarela, na altura da Passarela do Pinheiro e queria ir para a Praça do Parque União. O motorista da empresa mandou, pelo chat disponível do aplicativo, a seguinte mensagem: “Boa noite, qual destino?” Após a estudante responder, ele cancelou a viagem. Na segunda tentativa, o motorista, pelo mesmo chat, perguntou para onde Ana ia, “por questões de segurança”. Ela respondeu, “o senhor não vai entrar na favela”. A mensagem foi notificada como “lida”, mas o motorista não respondeu, a família da Ana não conseguiu embarcar e, segundo ela, ele nem cancelou a viagem. “Não foi a primeira vez”, desabafa a estudante de jornalismo. Entramos em contato com a assessoria de imprensa da empresa Uber, mas não obtivemos resposta.

Mototáxi que salva

Mototaxista Luan Farias: há 11 anos auxiliando os moradores a se deslocarem pela cidade | Foto: Jéssica Pires

Alguns carros particulares como o “Uber Maré” e outros transportes executivos prestam esse serviço na favela (ver boxe). No dia 24 de setembro, é comemorado o dia nacional de um dos meios de transporte mais usados em favelas de toda a cidade: o mototáxi. Segundo descrito no Projeto da Lei, sancionado em 2007, “no Brasil, em menos de 10 anos de existência, a atividade de mototáxi, exercida predominantemente por jovens, consolidou-se nos mais diversos centros urbanos de todo o País, em especial nas regiões menos assistidas pelo poder público, constituindo uma realidade irreversível no transporte de passageiros. No contexto do desenvolvimento social, no qual se conjugam a pobreza e a possibilidade de remuneração, o mototáxi se configura como uma realidade de mercado para as comunidades mais pobres, contribuindo para a superação da vulnerabilidade de deslocamento”.

No Rio, o Decreto que regulamentou o serviço de transporte de passageiros por moto, o trabalho de mototaxista, foi assinado em março deste ano, e estabeleceu que para exercer a profissão é obrigatório ter mais de 21 anos e habilitação da Categoria A. Luan Farias, “cria” da Maré e mototaxista há 11 anos, confessa que não sabia do dia dedicado à sua profissão. Atualmente, trabalha no ponto da Passarela 7, na Escola Bahia, e conta que leva por dia cerca de sete pessoas durante as 8 horas de trabalho que cumpre diariamente. Perguntado se ao longo desses anos alguma história o marcou, Luan diz que são tantas, que nem consegue lembrar. “São tantas que, pra eu lembrar aqui, acho até difícil”. Se gosta da profissão? “Sim, claro que eu gosto. É o que me sustenta, né? A credibilidade de comprar minhas coisas, não depender de ninguém, só eu trabalhar. E me ajuda em tudo, já comprei uma casa, já comprei carro, comprei moto”.

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