Justiça é diferente de vingança: uma visão contra a pena de morte

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Flávia Cândido*

A frase “bandido bom é bandido morto” reflete uma mentalidade punitivista que negligencia a complexidade dos problemas sociais e as potencialidades de reabilitação e reintegração dos indivíduos. Apesar disso, 76% de paulistanos e cariocas defendem a pena de morte. Esta visão, embora popular entre certos segmentos da sociedade, é contraproducente para a construção de um ambiente seguro e justo. Em vez de apostar na eliminação dos considerados “bandidos”, devemos focar em políticas públicas que promovam a recuperação e ofereçam oportunidades reais de mudança de vida.

Vivemos em uma sociedade onde a justiça é frequentemente substituída pela vingança, criando um apartheid social. Um crime cometido por alguém com recursos financeiros é tratado de maneira muito diferente do mesmo crime cometido por alguém sem recursos. Esse apartheid social é evidente no sistema de justiça criminal brasileiro, onde a superlotação das cadeias é em grande parte devido a pessoas que ainda nem foram julgadas. É fundamental entender que a recuperação e reintegração são caminhos mais justos e eficazes para lidar com o crime, ao invés de perpetuar a punição severa e a exclusão.

 A importância da recuperação e reintegração

Pessoas boas são aquelas que, mesmo após cometerem erros, têm a chance de se recuperar e reintegrar na sociedade. Essa visão está fundamentada na crença de que todos têm potencial para a mudança, desde que sejam oferecidas condições adequadas para isso. Programas de reabilitação bem estruturados, educação e capacitação profissional são ferramentas poderosas para transformar vidas e reduzir a reincidência criminal.

Após serem julgados e condenados por seus crimes, os indivíduos que cumprem suas penas têm o direito de reconstruir suas vidas. Eles pagaram pelo erro cometido e, apesar de sua ficha permanecer manchada, devem ter a oportunidade de recomeçar. A verdadeira justiça não se confunde com a vingança; a dor da justiça é distinta da dor da vingança. A morte de uma pessoa não desfaz o crime cometido, nem alivia a dor. Em vez disso, perpetua um ciclo de violência e sofrimento. A sociedade deve focar em proporcionar uma segunda chance, oferecendo suporte para que ex-detentos possam se reintegrar, contribuindo positivamente para a comunidade e vivendo de maneira digna.

Políticas públicas eficazes

Para que a recuperação seja eficaz, é essencial a implementação de políticas públicas preventivas e de apoio à reintegração social dos indivíduos que cometeram crimes. Políticas públicas preventivas, como a melhoria do sistema educacional, a criação de oportunidades de emprego e o fortalecimento das redes de apoio comunitário, são fundamentais para abordar as raízes dos problemas sociais que levam ao crime.

Além disso, políticas públicas focadas na recuperação dos indivíduos condenados são cruciais. Esses programas devem incluir apoio psicológico e psiquiátrico, proporcionando um tratamento adequado para os problemas de saúde mental que muitas vezes estão na base dos comportamentos criminosos. A motivação para estudar e participar de oficinas criativas também desempenha um papel vital na reabilitação, oferecendo aos ex-detentos habilidades e oportunidades que podem ajudá-los a se reintegrar na sociedade de forma produtiva.

Investir em psicólogos, psiquiatras e programas educacionais para os presos não só ajuda na recuperação individual, mas também contribui para a redução das taxas de reincidência e para a construção de uma sociedade mais segura e coesa. Exemplos de sucesso podem ser encontrados em países que implementaram essas políticas com seriedade, mostrando que a recuperação é não apenas possível, mas também benéfica para toda a comunidade.

A falácia da pena de morte

Defensores da pena de morte argumentam que ela serve como um dissuasor eficaz contra o crime. No entanto, estudos mostram que não há correlação significativa entre a aplicação da pena de morte e a redução das taxas de criminalidade. Em muitos países que adotam a pena de morte, os crimes continuam ocorrendo, demonstrando que o punitivismo não resolve a questão da segurança pública. Pelo contrário, a pena de morte perpetua um ciclo de violência e não aborda os fatores subjacentes que levam ao comportamento criminoso. Além disso, o sistema judicial é falível e pode resultar na execução de inocentes, uma injustiça irreversível.

A moralidade e os direitos humanos

A aplicação da pena de morte levanta sérias questões morais e de direitos humanos. Uma sociedade que se baseia na vingança e na eliminação dos “indesejáveis” nega a dignidade e o valor inerente a cada ser humano. É crucial entender que vingança é diferente de justiça. Enquanto a justiça busca reparar o dano e proporcionar um caminho para a recuperação e a reintegração, a vingança simplesmente perpetua o ciclo de violência e sofrimento. A justiça é fundamental para a vítima ou seus familiares, proporcionando uma sensação de fechamento e equilíbrio. No entanto, a vingança, na forma de pena de morte, não resolve o problema e não traz de volta a vítima. Em vez disso, devemos focar em políticas que visem a prevenção do crime e a recuperação dos indivíduos, construindo uma sociedade mais justa e segura para todos.

A realidade do sistema carcerário brasileiro

Especialistas ouvidos recentemente pela Comissão de Segurança Pública apontaram que o sistema prisional brasileiro tem graves falhas e práticas inconstitucionais que não garantem a dignidade nem a ressocialização dos presos. A senadora Leila Barros destacou que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu o “estado de coisas inconstitucional” do sistema penitenciário brasileiro, responsabilizando-o pela violação massiva dos direitos fundamentais dos presos e exigindo soluções urgentes. O Brasil tem atualmente a terceira maior população carcerária do mundo, com cerca de 852 mil pessoas cumprindo pena. Destas, 650 mil estão em celas físicas, 129 mil estudam para diminuir a pena e 166 mil estão envolvidas em atividades laborais.

Gabriel Sampaio, da Conectas Direitos Humanos, afirmou que o sistema penitenciário precisa de medidas emergenciais para superar seus problemas crônicos, que incluem a falta de condições mínimas de educação, saúde e acesso ao trabalho. Ele criticou a recente lei que restringe as saídas temporárias de presos, argumentando que isso dificulta ainda mais a ressocialização e reinserção familiar dos detentos. Além disso, Sampaio destacou que a implementação de exames criminológicos para a progressão de regime penal, exigida pela nova lei, não tem eficácia comprovada e sobrecarrega um sistema já deficiente em recursos e pessoal.

O coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do CNJ, Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi, pontuou que a desestruturação do sistema prisional impede que ele atenda às suas finalidades básicas. Ele ressaltou que o sistema prisional existente “mata” e “cancela” pessoas para o resto da vida, em vez de promover a recuperação e a reintegração. Para enfrentar essa crise, é necessário refundar o sistema, aproveitando as boas iniciativas e os bons profissionais existentes, além de garantir os recursos públicos necessários para implementar políticas públicas eficazes.

 Recuperar é mais barato que manter preso

Além dos aspectos humanitários e de segurança, é importante frisar que recuperar um indivíduo é significativamente mais barato do que mantê-lo preso. Estudos mostram que, enquanto o custo anual para manter um preso pode chegar a R$ 40.000,00, os programas de reabilitação e reintegração custam significativamente menos. Programas de educação e capacitação profissional, por exemplo, podem custar em média R$ 5.000,00 por ano por pessoa. O investimento em suporte psicossocial e tratamento de saúde mental também é mais econômico, com custos estimados em R$ 8.000,00 anuais por indivíduo. Esses programas não só diminuem a reincidência criminal, mas também aliviam o peso financeiro sobre o sistema penitenciário e, por consequência, sobre os cofres públicos.

Pode-se concluir que, em vez de perpetuar a ideia de que “bandido bom é bandido morto”, devemos promover a visão de que pessoas boas são aquelas que tiveram a chance de se recuperar e reintegrar na sociedade. Políticas públicas eficazes e compassivas podem transformar vidas, reduzir a criminalidade e construir uma sociedade mais justa e segura para todos. Acreditar na capacidade de mudança e investir na recuperação é, em última análise, um ato de fé na humanidade e um compromisso com um futuro melhor.

A justiça é fundamental para a vítima ou seus familiares, mas não deve ser confundida com vingança. Este artigo defende a verdadeira justiça, que busca a reparação e a recuperação, e não a vingança, que apenas perpetua o ciclo de violência e sofrimento.

*Flavinha Cândido é moradora da Maré e colunista no Maré de Notícias, formada em Letras pela UERJ, Pós-graduada em Letramento Racial e Idealizadora da Página no Instagram Racial Favelado

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