Considerada um marco na defesa dos direitos humanos no Brasil, a Lei nº 11.340 melhorou o cenário da agressão à mulher, mas ainda há muito o que mudar
João Ker
A cada 2 segundos, uma mulher é vítima de violência física ou verbal. Quando você terminar de ler esse texto, o número de mulheres que foram espancadas, xingadas, estupradas ou coagidas já vai ter ultrapassado a casa dos milhares. É difícil imaginar que esses números já foram ainda maiores no Brasil, mas essa realidade só começou a ser transformada em 2006, quando a Lei Maria da Penha (nº 11.340) foi aprovada no País, criando um marco nos direitos humanos de toda a América Latina. Mas acreditar que essas agressões foram completamente extintas é impossível e, agora, no aniversário de 11 anos da Lei, a luta pela existência digna das mulheres em um País que insiste em enxergá-las como “especialistas dos preços de supermercado” continua forte e necessária como sempre.
“A Lei 11.340 é diferente, porque prevê vários tipos de violência. O seu artigo 7º é muito rico e um marco importante, porque o direito penal prevê o princípio da legalidade. Não há crime sem lei que o defina. Colocar essas formas de violência no papel – como a violência psicológica, por exemplo – obriga a polícia e o judiciário a investigarem e punirem, respectivamente”, explica a advogada Nayra Gomes Mendes, 28 anos, pós-graduada em Gênero e Direito pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. “O que mais mudou foi o enfrentamento das mulheres sobre a violência que sofriam. Esse é o perfeito exemplo para a definição da palavra ‘empoderamento’. A Lei é séria e tende a ser cumprida, por isso vale a pena denunciar e não mais sofrer calada”, complementa.
Ainda assim, os números recentes da violência contra a mulher assustam. De acordo com o último Dossiê da Mulher, divulgado neste ano pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, 132.665 mulheres sofreram algum tipo de violência entre janeiro e dezembro de 2016. As taxas de homicídio doloso, onde há a intenção do crime, subiram pela primeira vez nos últimos 10 anos. E os registros oficiais do Estado ainda apontam que 16 desses casos configuraram feminicídio, ou seja, quando o crime ocorre unicamente motivado pelo ódio contra o gênero. Em outras palavras: a mulher morre pelo simples fato de ser uma mulher. Mais necessário ainda é destacar que nem todos esses assassinatos passam pelas delegacias, e a realidade conta com números muito maiores que os oficiais.
Os locais de ocorrência desses crimes também têm muito a dizer sobre o Brasil atual e o quão pouco ele mudou nos últimos anos. Nos quadros divulgados pelo Dossiê, o lar aparece em segundo lugar como local de maior incidência dos casos, totalizando 40,7% das tentativas de homicídio, 34,6% dos homicídios “bem-sucedidos”, 70% das lesões corporais e 66% dos estupros. “Antes, a frase ‘em briga de marido e mulher ninguém mete a colher’ era uma realidade nossa, e as próprias autoridades policiais diziam isso às vítimas de violência. A violência doméstica é muito perigosa, principalmente porque ocorre no mundo privado, dentro dos lares, na intimidade. Por isso, as medidas protetivas para afastar um agressor do lar são tão importantes, mas insuficientes. Impossibilitar essa aproximação da vítima e de seus familiares muitas vezes recupera a dignidade de uma mulher e contribui para que ela sobreviva àquela situação, evitando até um crime de feminicídio”, defende Nayra, que pesquisa o tema desde que entrou na Graduação em Direito.
Hoje, o Estado do Rio de Janeiro conta com 14 Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (DEAMs) espalhadas por seus municípios. “Lá, o atendimento é especializado, com profissionais focados em perceber até a mais sutil das violências e dar o encaminhamento apropriado para esses casos”, afirma Nayra. Ainda assim, apenas no primeiro semestre de 2017 já foram registrados 37 assassinatos e 119 tentativas de homicídio doloso. Daí a importância de conhecer seus direitos, a melhor forma de acessá-los e como fazer com que eles sejam levados a sério.
Maria da Penha: brasileira, mulher e vítima de violência
A conquista dos direitos alcançados com a Lei Maria da Penha, assim como a de quaisquer outros ao longo da história, não foi nem um pouco fácil e só veio após 20 anos de luta da sua inspiradora. A cearense Maria da Penha é uma mulher real como tantas outras brasileiras que, em 1983, se viu vítima de agressão doméstica. Seu marido, o professor universitário Marco Antônio Heredia Viveros atirou nas suas costas enquanto ela dormia. Ela sobreviveu, voltou para casa paraplégica e foi mantida em cárcere privado, enquanto a história contada para os vizinhos e familiares foi a de que um assaltante tentou invadir seu lar. Apenas 15 dias depois, veio a segunda tentativa de homicídio, por meio de um chuveiro propositalmente danificado para que ela morresse eletrocutada durante o banho. Foi então que Maria da Penha teve a coragem de denunciar seu agressor e começar uma das mais longas e históricas batalhas jurídicas do País.
Hoje, exatos 11 anos depois de Maria ter conquistado um fato sem precedentes na nossa legislação, a rede de proteção às mulheres brasileiras é mais sólida e abrangente. A Lei que leva seu nome prevê cinco tipos de violência contra a mulher e cobre grande parte de seus desdobramentos. Além das DEAMs, a denúncia também pode ser feita pelo Disque 180, uma linha criada pela Secretaria de Apoio às Mulheres, em 2005, especialmente para esse tipo de caso. Mas, apesar de 98% dos brasileiros conhecerem a Lei Maria da Penha, de acordo com um estudo levantado pelo Instituto Patrícia Galvão, ainda há um trabalho de disseminação da informação muito forte a ser feito.?
Na Maré, um primeiro passo rumo à conscientização e ao auxílio das vítimas de violência doméstica será dado no dia 2 de setembro. A data irá marcar a inauguração de um novo serviço oferecido pela Casa das Mulheres: a assistência social voltada especificamente para esses casos, com foco especial no aconselhamento jurídico. “Por meio de uma parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro e seus estudantes de Serviço Social, nós iremos mostrar para as moradoras todas as ferramentas legais que elas têm à disposição para enfrentarem esse tipo de abuso”, comenta Shirlei Villela, coordenadora do espaço da Redes da Maré que, desde a sua inauguração, em outubro, já oferece cursos profissionalizantes de alta gastronomia e rodas de conversa com as moradoras do local. De acordo com ela, o projeto irá possibilitar o acesso à informação de forma mais inclusiva: “Não teremos nenhuma burocracia! É só chegar, que nós atenderemos”, assegura.