Luta por justiça: a história de Irone e Vitor na Maré

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Há 8 anos, mãe e filho buscam reparação em caso de violência durante a ocupação do exército

Maré de Notícias #148 – maio de 2023

Por Hélio Euclides, Jéssica Pires e Matheus Affonso

A vida de Vitor Santiago Borges mudou drasticamente há oito anos, na noite de 12 de fevereiro de 2015, quando o carro em que ele estava foi alvejado por um soldado das Forças de Pacificação do Exército, que ocupavam a Maré na época. Até hoje, ele aguarda uma resposta da Justiça e, mais importante, a indenização que vai dar a ele a chance de viver uma vida digna, com todos os cuidados de que ele precisa. 

Já passava das 2h da madrugada do dia 12 de fevereiro quando Vitor e mais três jovens voltaram para a Maré depois de assistir a uma partida de futebol do Flamengo na Vila do João. Já no centro da comunidade, o carro onde eles estavam foi alvejado quatro vezes por um fuzil 762. 

Duas balas atingiram Vitor. Uma entrou pelo tórax e atravessou o pulmão e a medula, deixando-o sem movimentos do peito para baixo; a outra atravessou sua perna esquerda, que acabou sendo amputada. Os três amigos de Vitor que estavam no carro (um deles havia se mudado para Manaus e passava férias no Rio de Janeiro) sofreram ferimentos leves.

“Lembro do barulho das botas no chão, das lanternas brilhando na minha cara, da textura do chão e do cheiro forte de diesel. Lembro de tudo”, conta Vitor. Entre apagões e flashes de memória sobre os momentos depois de ser atingido, ele fala sobre a visão das botas ao seu lado, o que fez ele entender que estava dentro de um tanque do exército.

Foram 98 dias de internação. Ele precisou ser entubado e receber transfusões de sangue, fez  hemodiálise e cirurgias. Depois, Vitor precisou passar por fisioterapia motora e respiratória, enfrentou medo e insegurança, e teve que se adaptar a mudanças em seu estilo de vida como morador da Vila dos Pinheiros.

Sem reparação 

Vitor sonhava em viver da música, mas precisava trabalhar para, aos 29 anos, cuidar da filha de dois anos. Decidiu fazer um curso técnico e planejava cursar Engenharia. Em fevereiro daquele ano, ele foi desligado do emprego e estava na expectativa de curtir o carnaval carioca com os amigos. 

Nada do que planejara se realizou depois dos tiros disparados contra o carro na noite de fevereiro de 2015. Com o retorno para casa e a necessidade de adaptações para lidar com sua nova condição de cadeirante, Vitor esperava receber apoio do Estado, mas isso não aconteceu. Atualmente, ele tem apenas direito a atendimento no Hospital Geral do Exército. Vitor precisou se mudar e, para conseguir uma cadeira de rodas e uma cama adaptada, contou com doações de amigos, pessoas e organizações. Desde sua alta há oito anos, ele tem custeado seus próprios medicamentos.

Vitor descobriu, durante a internação, que era testemunha em um caso investigado pelo exército brasileiro, mas ainda não havia processo civil através do qual ele buscaria reparação. Com o apoio de organizações que lutam em prol das vítimas da violência do Estado, a ação foi elaborada. 

Em 2018, o juiz Sérgio Bocayuva Tavares de Oliveira Dias, da 5ª Vara Federal do Rio de Janeiro, julgou procedentes os pedidos de Vitor, determinando que o Estado pagasse indenizações por dano moral e estético e os custos com cuidadores e um veículo adaptado, entre outras demandas de natureza médica.

O caso ainda está em segunda instância, o que significa que o Estado pode recorrer da decisão. Em 2020, o cabo do exército Diego Neitzke, autor dos disparos de fuzil que atingiram o carro onde Vitor estava, foi inocentado pela Justiça Militar com base na teoria da “legítima defesa putativa”, ou seja, o militar alegou que atirou porque imaginou que estava sob risco.

Vitor afirma que tinha uma visão favorável da ocupação e até cumprimentava os soldados no início. Contudo, sua opinião foi abalada depois de vivenciar o lado perverso da ação militar que, em teoria, deveria protegê-lo.

Mãe não se cala

“Confesso que por um tempo eu tive medo, mas então percebi a força e a garra da minha mãe, e decidi começar a falar. Desde então, venho lutando. Infelizmente, minha mãe adoeceu e teve um aneurisma cerebral por causa do estresse. Ela sabia da injustiça na qual eu vivo e pela qual outras pessoas ainda estavam sofrendo”, reflete Vitor sobre a importância de sua mãe, Irone Santiago, durante todo o processo de cuidado e busca por justiça em seu caso.

Irone é uma costureira e mobilizadora do Eixo de Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré. Moradora da Vila dos Pinheiros, ela clama por justiça, lutando para que os culpados sejam obrigados a pagar indenizações que proporcionem casa e carro adaptados para o filho; compensação por danos morais e estéticos; e a continuidade da pensão por invalidez e do fornecimento de materiais médicos.

As mudanças na vida de Vitor fizeram com que a voz de Irone Santiago, em vez de se calar, falasse mais alto: “Ele disparou seis tiros, quatro atingiram o carro. Como um homem assim pode ser inocentado? Ele teve a intenção de matar. Ainda há um processo em andamento contra a União e o Ministério da Defesa. Fico chateada com a demora. Temos que exigir justiça, com prisão e indenização.” 

Apesar do sofrimento que dura quase uma década, Irone é firme em suas convicções e afirma que, se for necessário, vai até o presidente da República. “Estou muito revoltada ao ver meu filho, dependente até o fim da vida de uma cadeira de rodas. Temos a causa ganha, mas não recebemos nada. A imagem da justiça é cega, tem uma venda nos olhos, mas ela enxerga para alguns. Meu filho é pobre e favelado; se fosse rico, será que as coisas seriam assim?”, questiona ela.

Pele como agravante

Para Irone, a desigualdade social e as questões raciais estão em evidência na favela. Segundo ela, “somos sempre prejudicados e vistos como restos da sociedade. Fazemos parte da cidade, mas mesmo assim a polícia entra atirando e colocando o pé no portão. A cor da pele é um agravante. Quando ocorre operação policial, a vida para. O que está acontecendo hoje é um genocídio dos mais pobres. Nossos direitos são violados diariamente”.

Como forma de unir forças, Irone fortalece grupos de mães e de mulheres que perderam seus entes queridos em situações de violência: “Sou a porta-voz de muitas mulheres que precisam ter forças para lutar. Pensemos no Dia das Mães; nesta data, todas as guerreiras vão lembrar que estão passando por violações do Estado. Não podemos calar a voz, que cobra do Estado que nos dê uma resposta.” Em maio, acontece o VI Encontro Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Estado, no Espírito Santo.

Irone descobriu, no hospital, que seu filho era apenas uma testemunha no processo criminal instaurado na Justiça Militar (que culpava o amigo de Vitor, Adriano da Silva Bezerra, por ter “ignorado a ordem de parada dada pelos soldados”); foi quando ela começou a lutar para mudar a situação, e Vitor passou a ser autor da ação de indenização contra o Estado. Ainda hoje, persistem algumas perguntas sem resposta: “Por que não pararam o carro de outra forma? O veículo foi revistado na entrada da Vila do João, por que precisavam fazer o mesmo procedimento dez minutos depois? Ainda poderia ter havido mais vítimas. Foi uma total falta de preparo.” 

A imagem de Vitor no hospital continua na mente de Irone, que teve que aprender a cuidar das feridas do filho, já que não teve direito a atendimento médico domiciliar. “É uma luta diária por resultados, mas vamos conseguir justiça”, conclui.

Vitor conta que no início sentiu medo de denunciar, mas percebendo a força e a garra da mãe, decidiu começar a falar – Foto: Douglas Lopes

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