Marcha pelas vidas dos moradores de favelas no Rio de Janeiro!

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Por Eliana Sousa Silva*

 

 O aumento gradual da violência ocasionada pelos enfrentamentos entre grupos criminosos armados e pelas operações policiais nas favelas da cidade do Rio de Janeiro (neste caso, com maior abrangência e letalidade) tem efeitos aterrorizantes para as populações dessas regiões. Num levantamento simples, via registro em imprensa escrita, sobre o número de mortes por arma de fogo, nos quatro primeiros meses de 2017, em algumas das favelas cariocas – tais como Cidade de Deus, Manguinhos, Jacarezinho, Acari, Maré, Alemão, Rocinha, Cidade Alta e Fallet –, identificamos cerca de 120 moradores assassinados. Além disso, 63 policiais foram mortos no mesmo período, a maioria fora do horário de serviço, muitas vezes por reagirem a investidas criminosas ou por serem reconhecidos na condição de policiais, como pode ser observado no Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Púbica de 2016.

O embate bélico estabelecido pelos agentes da segurança pública tem como justificativa histórica o enfrentamento do comércio varejista de drogas nas favelas e as atividades consideradas ilícitas em torno desse contexto. É notório que a escolha feita pelo Estado, até o momento, em relação ao crime a ser combatido prioritariamente e, nesse caso, a estratégia para enfrentá-lo têm, acima de tudo, provocado o acirramento de uma batalha armada que coloca em um lugar desprezível uma população de quase 25% do município do Rio de Janeiro – 1.443.773, segundo o Censo IBGE 2010. O combate à milícia, grupo criminoso que mais cresce na cidade e que extorque os moradores e comerciantes dos territórios que controlam, por exemplo, é bastante limitado e secundarizado.

Ocorre que, na raiz dessa forma de agir dos agentes do Estado, revela-se, incorporado, um conjunto de representações negativas sobre os moradores das favelas e periferias, representações essas que se traduzem em preconceitos e ignorância sobre os direitos de tal população habitar a cidade e acessar às políticas públicas, inclusive o direito à segurança. A base dessas representações estigmatizantes é o racismo estrutural, que, lamentavelmente, continua hegemônico na nossa sociedade e permite a naturalização e a convivência banalizada com o número dantesco de assassinatos no país. Já estamos chegando a 60.000 mortos por ano, 13% de todos os homicídios cometidos no mundo.

A invisibilidade e insensibilidade a essas mortes decorrem do fato de as vítimas serem, principalmente, jovens negros, moradores de favelas e outras periferias. Em geral, não morrem por algo que façam, mas pela cor de sua pele. No Brasil, um negro tem duas vezes e meia mais chance de ser assassinado que um branco. Abdias do Nascimento, ainda em 1977, já alcunhava esse tipo de assassinato de ‘genocídio’, isto é, a eliminação física, constante e em grande escala, de um grupo social e/ou étnico específico em virtude de sua condição. Nesse contexto, temos, também, uma legião de mulheres que, ao perderem seus filhos ou companheiros, “sentem-se órfãs desses mortos”, como afirmam algumas delas. Sofrem com uma dor que as acompanha de maneira permanente e, além disso, tendem a assumir diversos papéis, dependendo da configuração familiar que possuem, o que as deixa ainda mais socialmente vulneráveis. Contudo, são essas mulheres que têm buscado cada vez mais não só reivindicar justiça no caso de homicídios, mas também nos momentos de enfrentamentos junto aos agentes de segurança e/ou integrantes de grupos criminosos armados. São mulheres que vêm se mobilizando e rompendo o medo de falar sobre as diferentes violências presentes no seu cotidiano, de denunciar o genocídio e o racismo.

Uma sociedade racista, nesse sentido, gera uma legislação e uma polícia do mesmo tipo. Por isso, temos leis que privilegiam alguns cidadãos, e aquelas que deveriam valer para todos só funcionam em algumas áreas privilegiadas da cidade. Como entender que, desde fevereiro do corrente ano, a Polícia Militar tenha ocupado quatro casas de moradores de uma das favelas do Complexo do Alemão como base militar, saindo delas somente depois de dois meses, a partir de uma liminar judicial, requerida pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro? Uma liminar para garantir o direito constitucional mais básico: a inviolabilidade e a privacidade do domicílio. Como naturalizar que um delegado da Polícia Civil solicite à Prefeitura do Rio de Janeiro que instale placas nas vias públicas das imediações da favela da Maré, onde vivem 140.000 pessoas, com os dizeres “área de risco”? Ambas ações, uma da Polícia Militar e outra da Polícia Civil do Rio de Janeiro, partem do pressuposto de que as populações do Alemão e da Maré, ou seja, cerca de 250.000 pessoas, são potenciais criminosos, oferecem risco para a sociedade e, portanto, devem carregar os estigmas e sofrer as consequências de atos que não lhe dizem respeito diretamente.

A democracia brasileira não está em risco, apenas, quando milhares de mulheres são assassinadas por sua condição de gênero; quando se passa por um golpe constitucional e se assiste a direitos sociais serem retirados por um congresso sem autoridade moral ou política; quando a intolerância se torna crescente contra os indígenas e contra as religiões afro-brasileiras; ou quando percebemos setores do judiciário a serviço de um projeto político autoritário em acordo com a grande imprensa. A democracia também se torna um conceito vazio quando os grupos sociais populares têm extirpado o seu direito básico à vida, quando uma polícia sem comando, sem limites na lei, dominada pelo ódio e o desejo permanente de vingança, transforma os moradores das favelas em inimigos a serem controlados, vigiados, punidos, castigados, agredidos ou mortos. A luta pela democracia nunca se fez tão urgente no Brasil e, com mais urgência ainda, nas favelas cariocas. Por isso, dentro do que nos é possível fazer, temos de nos mobilizar e buscar o envolvimento de toda a cidade para realizarmos, juntos, a Marcha da Maré e outras iniciativas pelo direito à vida e pelo fim da violência nas favelas.

A Marcha da Maré

Em 2016, 16 pessoas foram assassinadas na Maré devido a conflitos armados entre grupos criminosos e destes com a polícia. As escolas e postos de saúde ficaram vinte dias fechados. Uma violência sem medidas, que tornou um pesadelo o cotidiano de todos os moradores, especialmente o das crianças, impedidas de circularem nas ruas, tendo cerceado o seu pleno direito à educação, e o de pessoas que precisavam acessar algum atendimento médico.

Em 2017, na Maré, em apenas quatro meses, já foram assassinadas 18 pessoas, sendo duas delas policiais, e dezenas de outras ficaram feridas. As escolas estiveram fechadas por treze dias, já os postos de saúde, por dezenove. Mas, não são apenas essas as instituições atingidas: todas as organizações locais, o comércio e os indivíduos são acometidos por esses enfrentamentos apavorantes. Os níveis de estresse, depressão, enfartos e problemas de hipertensão cresceram de forma assustadora, criando-se um território de pessoas doentes, ansiosas e em sofrimento. O uso de psicotrópicos, legais e ilegais, vem aumentando consideravelmente como forma de medicalizar essa dor. Tal contexto pode ser reconhecido também em muitas outras favelas do Rio de Janeiro, como é o caso do Alemão, nas últimas semanas.

Em função disso, instituições da Maré, mas não somente, como escolas, associações de moradores, comerciantes, igrejas e moradores de modo individual se mobilizaram para criar o Fórum “Basta de Violência, outra Maré é possível”. O objetivo do fórum é criar condições para enfrentar as diversas formas de violências presentes nas favelas, em específico os conflitos entre os grupos civis armados e a ação bélica, sem base legal e respeito à vida, efetivada pelas forças policiais. A favela não pode ser arena de uma guerra sem sentido, que gera dor, revolta e morte.

A primeira grande ação do Fórum da Maré, que é permanente, será a realização de uma Marcha no dia 24 de maio por todas as favelas, que culminará em um ato reunindo todas as pessoas que acreditam que outra Maré é possível.  Nesse sentido, convidamos todas e todos que queiram auxiliar nesse processo. Estamos mobilizados por nossa indignação e certos de que podemos e devemos nos unir para visibilizar as violências que vêm ocorrendo nas favelas do Rio de Janeiro. Se você também acredita nisso, entre nessa corrente.

Facebook: http://www.facebook.com/forumbastadeviolencia/

Email: [email protected]

*Eliana Sousa Silva é diretora da Redes da Maré

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