Maré de Educação: A violência que freia a aprendizagem 

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Desde 2016, as escolas públicas da Maré já fecharam 132 dias por conta operações policiais e confrontos. Série de reportagens do Maré de Notícias abordará questões discutidas no 4º Seminário de Educação na Maré.

Adriana Pavlova e Hélio Euclides

Maré de Notícias #152 – setembro de 2023

O protocolo de suspensão das aulas do Curso Pré-Vestibular (CPV) da Redes da Maré para momentos de conflito é ativado, enquanto alunos correm para se proteger dos tiros e os professores tentam resguardar os estudantes do terror gerado pelo confronto armado nas ruas dos territórios. Essas situações, infelizmente corriqueiras, ilustram uma das faces mais perversas da violência na Maré: os prejuízos na educação dos moradores, quer eles estudem ou não dentro do conjunto de favelas.

Coordenadora do CPV, Luana Silveira se jogou no chão da Casa das Mulheres, no Parque União, para proteger seu corpo e o da aluna que estava com ela, quando o barulho ensurdecedor dos tiros vindos do helicóptero da Polícia Civil interrompeu um evento sobre os impactos da violência na vida das mulheres mareenses. Parecia ter voltado à infância, no fim dos anos 1990, na casa na Rua Nova, Parque Rubens Vaz, quando sua mãe a escondia junto com os irmãos debaixo da cama para fugir das rajadas de tiros.

Perto dali, na Biblioteca Lima Barreto, na Nova Holanda, o professor da turma Atuários do Futuro do CPV, com 24 alunos, parou a aula para acalmar os jovens surpreendidos pelas balas. Os celulares começaram a tocar com mães e pais assustados, querendo notícias. Luana passou a monitorar, pelo telefone, a situação dos alunos. Mais de 200 pré-vestibulandos perderam as revisões naquele dia 14 de abril.

Presidente do Grêmio do CIEP 326 Professor César Pernetta, a estudante do Ensino Médio Mari Knupp, 16 anos, não teve aulas de biologia e química durante um mês, no primeiro semestre de 2023, por conta de operações policiais. As matérias nunca foram repostas. Já Jane Trajano, orientadora da Programa de Educação de Jovens e Adultos (PEJA) do CIEP Ministro Gustavo Capanema, em 32 anos dando aulas na Maré, sabe que em dia de operação ou confrontos, mesmo que a escola abra à noite, a frequência de estudantes é baixíssima e os que vão seguem em estado de alerta.

Na casa de Gabrielle Silvestre, na Nova Holanda, dia de operação policial na Maré é sinônimo de filhos sem aulas, atraso no aprendizado, pais tensos para sair para o trabalho e corrida pela rua, sob medo, até a casa da avó, para deixar as crianças. Ainda que o mais velho,  Luiz Felipe, de 13 anos, não estude na Maré e sim na Escola Municipal Berlim, em Ramos.

Segundo o Boletim Direito à Segurança Pública na Maré, da Redes da Maré, de 2016 a julho de 2023, foram 132 dias de escolas fechadas. Só este ano,  aconteceram 16 operações policiais, com 14 dias de escolas sem abrir, impactando a rotina de cerca de 20 mil estudantes. Nem sempre as 50 escolas públicas são fechadas ao mesmo tempo, mas a vida dos alunos e dos profissionais de educação – a saúde física e mental de cada um deles  – é abalada de forma inegável, atrapalhando e atrasando a aprendizagem. Os danos são imensuráveis, gerações de estudantes mareenses prejudicados.

“As operações são traumáticas, não tem como os responsáveis saírem para trabalhar e deixarem os filhos sozinhos. Muitos deles relatam a invasão de suas casas. Do ponto de vista da aprendizagem, é um dia muito difícil, tudo fica agitado, tenso. A gente precisa estar ali, não é um ato heroico, mas sabemos quanto é necessário o espaço da escola para os alunos. É a complexidade do ensino e a ausência de investimento na segurança pública. A impressão é que segurança pública e educação não dialogam, a gente fica à mercê das situações”, opina Jane Trajano, do PEJA do Capanema.

Ações conjugadas

A recém-lançada Carta para a Educação da Maré joga luz na violência que altera o dia a dia dos estudantes e educadores da Maré, com recomendações ao poder público para a ampliação do direito ao estudo no território. Uma das sugestões do documento elaborado pelos cerca de 300 participantes do 4º Seminário de Educação da Maré, realizado em junho, no Centro de Artes da Maré, é a necessidade de ações conjugadas entre os governos estadual e municipal.

Segundo Maykon Sardinha, coordenador do Eixo de Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré, a segurança pública no Rio de Janeiro teve uma sensível piora desde 2019, com a extinção da Secretaria Estadual de Segurança e do Conselho Estadual de Segurança Pública.

“Rompeu-se por completo a participação cidadã na construção das políticas de segurança pública. Desde então, os governadores Wilson Witzel e Cláudio Castro promoveram uma ineficiente política de enfrentamento bélico ao crime organizado nas favelas. Não existe ação articulada entre os governos no campo da segurança pública”, analisa Maykon.

Fechamento de escolas gera atrasos na aprendizagem dos estudantes mareenses. Foto: Affonso Dalua

           Desrespeito à ADPF

Acrescente-se o fato de as operações ignorarem determinações da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635 (a ADPF das Favelas), de 2017, que prevê que a ação policial não pode ser realizada próxima às escolas. 

Procurada para comentar as recomendações da Carta para a Educação da Maré sobre violência e educação, a assessoria de imprensa da Secretaria de Estado de Polícia Militar disse, em nota, que “as ações da Corporação em comunidades do estado, entre as quais as localizadas no Complexo da Maré, são previamente comunicadas às secretarias de Saúde e Educação, como também ao Ministério Público do Rio de Janeiro, conforme determinação do Supremo Tribunal Federal (STF).”

Já o secretário municipal de Educação, Renan Ferreirinha, confirmou que existe uma tentativa de comunicação com a Polícia Militar (que, nas palavras dele, “não acontece de maneira ideal”) para que horários escolares e o entorno das escolas sejam preservados. O próprio secretário se espanta com a necessidade de monitoramento de confrontos próximos às escolas:

“A SME faz uma análise diária, na Maré e em outras comunidades, da situação dos confrontos, para saber se é possível ter aulas. É surreal que essa prática seja parte da rotina de uma secretaria de Educação. A gente tem um projeto pedagógico complexo e completo, bem elaborado, que, infelizmente, é impactado frequentemente pela rotina de confrontos armados”, disse o secretário.

Comitê

Para minimizar os efeitos da violência, a subsecretária de Planejamento e Ações Estratégicas da Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro, Myrian Medeiros, anunciou que em breve diretores das quatro escolas estaduais da Maré passarão por treinamento do Comitê Internacional da Cruz Vermelha.

“Eles serão inseridos nos programas Acesso Mais Seguro e Comportamento Mais Seguro, que fazem parte de ações de segurança e paz nas escolas em fase de implantação. Assim vamos entender melhor a situação da região e das escolas em dia de operação”, explicou ela.

Recentemente, a Myrian Medeiros visitou as escolas estaduais da Maré, justamente para entender as peculiaridades de cada uma e pensar em formatos mais eficazes de reposição das aulas perdidas em dia de confrontos ou operações policiais no território. 

“A Secretaria Estadual de Educação tem como praxe repor as matérias perdidas em aulas online e com apostilas impressas. No entanto, é importante buscar novos formatos de reposição de acordo com o histórico de cada unidade. No caso da Maré, cada uma das quatro escolas tem realidade e potencial diferentes, porque estão em regiões diferentes da Maré. O Colégio Professor César Pernetta, por exemplo, tem um segundo turno esvaziado, no qual é possível pensar numa complementação de atendimento para os alunos de outros turnos, de forma individualizada, algo que também pode acontecer no João Borges, por conta do horário integral. Neste momento estamos refletindo sobre novas possibilidades de atendimento para ratificar o compromisso do cumprimento dos 200 dias letivos”, contou a subsecretária.

Para que as 42 recomendações da Carta para a Educação da Maré sejam amplamente conhecidas, no dia 14 de setembro, às 15h, o Eixo de Educação da Rede da Maré apresentará o documento no Centro de Artes da Maré.

Propostas da Carta para a Educação da Maré:
– Garantir condições para  efetivar os 200 dias letivos.
– Promover a ampliação de diálogo entre educação e segurança pública, para  romper o repetido ciclo de impedimento de funcionamento das escolas por conta de operações policiais em horário escolar. Governos estadual e municipal devem trabalhar de forma articulada para pôr fim a essa e outras violações de direitos.
– Incorporar e considerar no planejamento do cotidiano escolar os impactos da (in)segurança pública no processo de escolarização. Criar ações de apoio psicológico e de planejamento pedagógico durante e após as situações de conflitos armados e operações policiais.

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