Elefantes brancos da pandemia

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Hospitais de campanha deixam de ser solução para virarem problema

Maré de Notícias #115 – agosto de 2020

Hélio Euclides

Vamos celebrar nosso governo. E nosso Estado que não é nação. Vamos celebrar epidemias. É a festa da torcida campeã esse trecho da música Perfeição, de composição de Marcelo Bonfá, Dado Villa-Lobos e Renato Russo, foi lançada em 1993, mas continua atual nos dias de hoje. Com a pandemia, vieram ideias mirabolantes. Os hospitais de campanha é um desses projetos, que nasceram para desafogar as unidades de saúde, mas não chegaram a funcionar como planejado, seja por falta de pessoal, de equipamentos, de remédios, além de confusões nas inaugurações e administrações. 

Além dos atrasos nas entregas e de todo o escândalo de corrupção que envolveu a construção e compra de equipamentos, o secretário de saúde, Alex Bousquet, anunciou nesta quarta-feira (29) que até 12 de agosto os cinco hospitais de campanha geridos pelo estado estarão fechados. Os de Duque de Caxias, Nova Friburgo e Nova Iguaçu serão fechados já na primeira semana de agosto. Os hospitais do Maracanã e São Gonçalo encerrarão o seu funcionamento na semana seguinte. Segundo o secretário, a previsão do fechamento dos hospitais iria acontecer quando a curva de casos e mortes começasse a diminuir e a equipe técnica avalia que esse é o momento. 

De acordo com o Secretário, em coletiva na sede da Secretaria de Estado de Saúde, “independente do planejamento ter sido equivocado, ele já incluía começo, meio e fim, de acordo com a evolução da epidemia. Essa evolução mostra que nós estamos, assim como outras regiões do mundo inteiro, próximo do fim das unidades de apoio, que aqui foram chamados de hospitais de campanha”. O secretário afirma que há leitos suficientes para atender uma segunda onda da doença, que ele acredita que não vai acontecer. 

Como tudo aconteceu

Toda a desordem começou com o governo federal desconsiderando a pandemia e, em alguns momentos, chegando a atrapalhar ações realizadas por instituições de Saúde. O Supremo Tribunal Federal (STF) interviu, assegurando aos governos estaduais, distrital e municipais competência para a adoção de medidas restritivas durante a pandemia da COVID-19. A partir daí, estados e municípios decretaram calamidade pública com a flexibilização na contratação de pessoal e na compra de bens e serviços. Isso facilitou as licitações contraditórias e, em alguns casos, sem concorrências. Ainda assim, relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) mostrou que o Rio de Janeiro foi um dos estados que menos receberam recursos financeiros do Ministério da Saúde.

No Rio de Janeiro, a única solução apresentada foi a construção dos hospitais de campanha, unidade que pode ser construída em diferentes locais e depois desmontada, com funcionamento temporário. O artifício para a construção era desafogar o sistema tradicional de Saúde das regiões afetadas pelo coronavírus. Da Prefeitura veio a promessa de duas unidades: o hospital do Riocentro, em Jacarepaguá, com 500 leitos, foi inaugurado; o outro em Santa Cruz, mas só seria construído quando todos os leitos da cidade estivessem ocupados.

O governador do Estado, Wilson Witzel prometeu que construiria nove hospitais até o dia 30 de abril. Desses, dois são de administração privada, pela Rede D’Or, no Leblon, e o segundo no Parque dos Atletas, na Barra da Tijuca. Contudo, os sete hospitais que seriam administrados pelo governo estadual enfrentaram problemas e os prazos não foram cumpridos. Surgiu a “novela” dos hospitais de campanha.

Prometidos pelo governo do Rio de Janeiro para o fim de abril, o hospital do Maracanã, localizado no Estádio Célio de Barros, foi inaugurado no dia 5 de maio e o de São Gonçalo só no dia 18 de junho. Os hospitais de São Gonçalo e Maracanã estão sendo administrados pela Fundação Saúde, da própria Secretaria de Estado de Saúde (SES-RJ), já que o governo do estado rompeu com a organização social Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde (IABAS), após atrasos na construção e uma série de denúncias de irregularidades. Mesmo assim, o IABAS recebeu R$ 256 milhões.

Os outros cinco não foram inaugurados. A Secretaria de Estado de Saúde informou que os hospitais de campanha de Nova Iguaçu, Duque de Caxias e Nova Friburgo foram concluídos, mas permaneceram fechados e seriam usados apenas como leitos de retaguarda, assim como o hospital modular de Nova Iguaçu. Já as unidades de Casimiro de Abreu e Campos dos Goytacazes tiveram suas montagens interrompidas. Nessas regiões, caso haja necessidade de ampliar os leitos de atendimento dos pacientes com COVID-19, a SES irá pactuar a utilização de leitos nas redes privadas de Saúde.

Apesar de não entrar na contagem dos hospitais de campanha, a unidade de Bangu foi construída no Complexo Penitenciário de Gericinó. O hospital de campanha para tratar da população carcerária do Rio de Janeiro com suspeita de COVID-19 não foi entregue. Há suspeitas de irregularidade na licitação. 

Gerido pela iniciativa privada, Hospital de Campanha do Leblon foi o primeiro a ser inaugurado – Foto: Mauricio Bazilio/SES

Quem sair por último, apague a luz

Com acusações de irregularidades e corrupção, a SES vive uma crise, com compra de material superfaturado e administração desastrosa do IABAS. Em meio à pandemia, já ocorreu a troca de secretários por duas vezes. Fernando Ferry ficou no cargo por apenas um mês e quatro dias, quando assumiu a Secretaria no lugar de Edmar Santos, exonerado em meio às investigações. 

Os problemas começaram após o Ministério Público Federal apontar, para um grande esquema na cúpula do governo do estado, suspeitas de desvio de dinheiro público, com a prisão do ex-subsecretário de Saúde Gabriell Neves. Desde então, vários personagens do suposto esquema de corrupção, investigados em operações distintas, foram presos ou sofreram buscas e apreensão em suas residências e escritórios. 

Além disso, no início deste mês, a Assembleia Legislativa do Rio (ALERJ) decidiu instaurar processo de impeachment contra o governador Wilson Witzel. O último capítulo desse folhetim foi o fechamento temporário das atividades dos hospitais de campanha do Maracanã e de São Gonçalo. Funcionários da unidade do Maracanã alegam salários atrasados.

A importância do investimento correto

Vinícius Gama, morador da Vila do João, não acredita na relevância do projeto provisório feito para o enfrentamento da COVID-19. “Vejo que os hospitais de campanha não eram necessários, o que tinha de fazer era dar condições para os funcionários da Saúde trabalharem nos hospitais existentes e nas UPAs”, diz. Ele vê com pesar a corrupção na política de Saúde estadual. “Infelizmente, o que realmente aconteceu foi que pessoas se aproveitaram de cargos de confiança para desviar recursos da Saúde no momento em que vivemos uma pandemia”, conta.

Esse é o mesmo pensamento de Daniel Soranz, doutor e mestre em Saúde Pública, professor e pesquisador da Fiocruz. Para ele, foi um grande desperdício e absurdo. “Foi dinheiro jogado fora. Tinha de investir no Sistema Único de Saúde, no tratamento primário. Enquanto temos hospitais luxuosos de campanha no Riocentro e Maracanã, a UPA Maré está caindo aos pedaços, soltando o piso; o Centro Municipal da Vila do João não tem nem tinta para pintar as paredes; e na Nova Holanda, a Clínica da Família Jeremias Moraes da Silva não teve, até hoje, a ligação elétrica feita. Isto é desconhecer a cidade”, comenta.

“No hospital de campanha do Riocentro o máximo de leitos ocupados foi de 110, enquanto o Hospital de Acari está com 150 leitos fechados. Próximo à Maré, o Hospital Estadual Anchieta, no Caju, são 75 leitos fechados”, expõe. O médico acredita que o governo federal também é culpado por se ausentar de ações e por não investir nos hospitais federais Clementino Fraga Filho, no Fundão, e no Hospital Federal de Bonsucesso, ambos com 200 leitos fechados cada. Segundo Daniel, há um total de 900 leitos municipais, 950 federais e outros 200 estaduais fechados, por falta de pessoal especializado.

O pesquisador lembra que, quando começou a pandemia, os técnicos avisaram para que não se fizesse hospital de campanha, pois era algo sem sentido. “Os governos investiram, acho que para ter visibilidade e tentar votos futuros. O pico da doença na cidade foi em maio, mas até hoje ainda se tem hospital em construção. Não há legado nenhum para a população, com equipamentos temporários, além de ser um rombo no orçamento público”, conclui. 

Durante a coletiva de imprensa na SES, o secretário de saúde afirmou que após a desmobilização dos hospitais de campanha, os equipamentos comprados pelo estado serão distribuídos para a rede estadual e municipal de saúde.

Um bom exemplo de administraçãoInaugurado em 19 de maio, o Centro Hospitalar para a Pandemia de COVID-19 – Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz), funciona no campus do Instituto Oswaldo Cruz, com 195 leitos. Construído em regime emergencial para unir esforços no fortalecimento da rede de Saúde, o hospital possui características específicas que o diferem das unidades de campanha que estão sendo erguidas pelo País e que terão funcionamento temporário. O hospital vai permanecer como um legado para o Sistema Único de Saúde, pós-pandemia.

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