‘Maré Olímpica’: ações esportivas visam potencializar trajetórias além de torneio mundial

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Excelência e escalada de sucesso atraem a atenção, mas especialistas, esportistas e mentores da Maré reforçam a importância da prática de esportes para além dos holofotes

Por Tamyres Matos, em 20/07/2021 às 07h 

Editado por Edu Carvalho

A relação entre os esportes e a construção das identidades sociais é marcada por palavras como ‘superação’, ‘inclusão’, ‘realização de sonhos’. Tais termos marcam as falas de praticantes, cientistas sociais, torcedores e órgãos públicos. Com a proximidade dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Tóquio, que começa nesta sexta-feira, dia 23, o Maré de Notícias resolveu se debruçar sobre a importância da disseminação de oportunidades para o desenvolvimento dos talentos e a relação entre esportes, território e identidade.

O coordenador esportivo da ONG Luta pela Paz, Roberto Custódio, acredita que a prática esportiva é uma metáfora para a vida. Nascido e criado na Maré, ele começou a treinar boxe através da organização aos 14 anos de idade, logo após ter a vida atravessada pela crueza da violência: seu pai, motorista de ônibus, foi assassinado por grupos armados da Maré. Sua busca inicial teve a ver com a necessidade de extravasar a raiva, mas seu discurso hoje em dia é totalmente voltado ao interesse em propagar as oportunidades que foram essenciais para sua formação.

“Esses jovens chegam aqui com sede de vitória, querem ser campeões. O que a gente passa para eles é que a preparação para a vida merece a mesma dedicação que a preparação para um campeonato. É normal que eles cheguem querendo tudo para agora, mas a lição mais importante do esporte tem a ver com resiliência, com saber cair e levantar”, pondera.

Coordenador esportivo da ONG Luta pela Paz, Roberto Custódio, carregando a tocha olímpica na Rio 2016 | Foto: Divulgação

Custódio chegou ao esporte porque queria aprender a se defender, mas, também, porque estava interessado em se destacar. Ele conheceu a Luta pela Paz após o contato com um ex-aluno quando trabalhava em uma locadora de vídeos. Segundo o mareense de 33 anos, à época, havia um evento anual na região do Parque Rubens Vaz e seus olhos brilhavam ao assistir as demonstrações de luta que ocorriam ali.

“Eu senti naquele momento que não precisava pegar numa arma para ser reconhecido. Ficou claro para mim que meu destino era subir no ringue e lutar na frente de todo mundo”, relembra.

Em uma trajetória vitoriosa, ele passou a fazer parte da seleção brasileira de boxe em 2009. Quatro anos depois, se tornou campeão continental, consagrando-se como o melhor das Américas no Campeonato Pan-Americano de Boxe disputado no Chile (categoria até 69 kg). Chegou, inclusive, a participar das Olimpíadas de Londres, em 2012, como primeiro reserva do pugilista Myke Carvalho.

Roberto Custódio e Myke Carvalho, nas Olimpíadas de Londres, em 2012 | Foto: Arquivo pessoal

“Sempre fui muito disciplinado, mas não almejava viver tudo o que vivi através do boxe. O esporte me levou a lugares inimagináveis. Fui três vezes campeão brasileiro e passei nove anos na seleção. Participei do revezamento da tocha olímpica nas Olimpíadas do Rio, em 2016. Quando saí da seleção, em 2018, iniciei minha primeira graduação em educação física, que era licenciatura. Agora estou na segunda, para alcançar o título de bacharel”, relata, devidamente contente com a própria trajetória.

‘Honra ao mérito’ e coletividade

O esporte é matéria constitucional. No artigo 217, a Constituição Brasileira expressa: “É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um”. O poder público tem a responsabilidade de incentivar o lazer e o esporte como formas de promoção social. 

De acordo com o doutor em serviço social e professor da Escola de Educação Física e Desportos (EEFD) da UFRJ Marcelo Melo, a construção de uma narrativa de ascensão social através do esporte é algo muito forte em toda a sociedade brasileira. No entanto, é essencial o entendimento de que essa construção da profissionalização como escalada para o sucesso esconde fatores essenciais. 

“A perspectiva de direito social ao esporte e lazer é muito importante para oportunizar vivências relevantes para jovens, crianças, adultos e idosos no esporte e outras vivências corporais. Isso não se faz sem políticas governamentais, com aportes de recursos, contratação de servidores públicos”, explica o professor, que deu aula na Vila Olímpica da Maré entre 2001 e 2003.

Para Marcelo, é preciso estarmos atentos aos perigos do discurso meritocrático que, muitas vezes, soam bastante sedutores, especialmente quando falamos dos jovens. Ele acredita que esse discurso que aponta o sucesso de alguns poucos frente às trajetórias mais comuns – que são a maioria – como fruto unicamente do esforço individual é uma das coisas “mais perversas que existem”. 

“Primeiro porque quer fazer crer que as oportunidades estão aí e só não aproveita quem não quer; segundo: coloca o eventual fracasso unicamente sobre responsabilidade daquele que não teria se esforçado o bastante; terceiro: silencia sobre uma questão anterior e mais importante: nessa sociedade racial e sexualmente desigual não existe a possibilidade de inserção com mínimo de dignidade para as grandes maiorias”, critica.

O especialista explica que sucessos individuais têm grande impacto sobre a trajetória de muitos jovens, ou seja, tem profunda relação com a construção da identidade. “Essa é a riqueza do esporte, sua magia e presença. Isso não tem relação com ser atleta, mas sim poder vivenciar ao longo da vida. Claro que isso não existe essa possibilidade sem equipamentos públicos para a população acessar. Campos, pistas de caminhada, quadras, piscinas, aparelhos de ginástica e musculação são essenciais para essa aproximação e manutenção da relação dos cidadãos com esporte e lazer”, afirma. 

Maré nas Olimpíadas

As histórias de vida de Custódio e Wanderson de Oliveira se cruzaram na Luta pela Paz. O pugilista Wanderson, conhecido como “Shuga” (em referência à pronúncia do nome do ídolo e campeão olímpico estadunidense Sugar Ray Leonard), também começou na Luta pela Paz. Atualmente o jovem de 24 anos, que morava na Rua Tatajuba, na Maré, é uma das esperanças de medalha do Brasil nos Jogos de Tóquio.

Academia Luta Pela Paz, na Maré | Foto: Arquivo pessoal

“Eu entrei no local onde funciona o Luta pela Paz para beber água em 2009, reconheci um colega que ‘tirava onda’ comigo e com os meus amigos e decidi começar a treinar para ‘tirar onda’ com ele também. Não brigar, só na brincadeira. Dois dias depois eu estava matriculado e treinando”, relata o pugilista, em entrevista por telefone diretamente da capital do Japão.

O discurso de Shuga tem vários pontos de contato com o de Custódio. O interesse imediatista da juventude em se destacar é responsável pelo entusiasmo inicial, mas o envolvimento com a disciplina do esporte cria um movimento mais duradouro. “O esporte muda a pessoa, educa, deixa a pessoa mais madura. Eu acredito ter ganhado muita maturidade com o boxe, você precisa desenvolver responsabilidade com o que faz para alcançar resultados positivos”, afirma.

Registro de 2001 com a presença do fundador da ONG Luta pela Paz, Luke Dowdney (de short branco com listra azul), em meio aos jovens praticantes de boxe | Foto: Acervo Luta pela Paz

Aos 12 anos, o pequeno Shuga já era campeão do Galo de Ouro Infantil, disputa que venceu três vezes. De lá para cá, ele foi vencedor dos Jogos Sul-Americanos de Cochabamba (Bolívia) em 2018 e medalhista em diversos torneios ao longo do ciclo, como a Cologne World Cup, onde levou o ouro. Pensando muito além da lista de vitórias ou derrotas, Wanderson reforça: “Se eu puder deixar uma mensagem pra criançada de hoje em dia é a de que o esporte salva”.

E o ânimo olímpico, cadê?

O brasileiro é um povo reconhecido mundialmente pela animação com competições esportivas, mas é possível afirmar que o cenário de pandemia junto com o aprofundamento da crise política e econômica afetou a relação da população com as Olimpíadas e Paralimpíadas. Além disso, a própria confirmação da realização dos Jogos (após o adiamento em 2020) ocorreu num ritmo diferente das edições anteriores por conta das restrições em todo o mundo.

Atleta paralímpico da classe T11 para deficientes visuais, Felipe Gomes representa a Maré nas Paralimpíadas. O multicampeão nasceu em Campos dos Goytacazes e morou na infância no Espírito Santo, mas foi criado e chegou à vida adulta na Nova Holanda. Vivendo a emoção das Paralimpíadas pela quarta vez, ele analisa o cenário de uma competição desse porte durante uma pandemia ainda fora de controle em tantos países.

Felipe Gomes, atleta paralímpico da classe T11 para deficientes visuais, representa a Maré nas Paralimpíadas | Divulgação

“Os atletas têm a percepção de uma falta de entusiasmo. Não estamos sentindo aquele espírito torcedor das pessoas a partir do crescimento de expectativa com a proximidade de competição. É claro que vamos competir com firmeza, seriedade. Sabemos da importância, mas também temos noção de que muitas mortes ainda estão acontecendo no Brasil, o processo de vacinação ainda está se arrastando. Isso tudo afeta o envolvimento das pessoas, inclusive o nosso. Mas que a gente, com a rigidez dos protocolos durante as práticas, consiga trazer um sorriso, uma alegria nesse momento tão difícil. O esporte tem essa capacidade”, pondera.

Com uma lista extensa de prêmios, como a medalha de ouro nos 200m rasos nos Jogos de 2012 em Londres e outro ouro no revezamento 4x100m (T11-13) nas Paralimpíadas Rio 2016, Felipe é mais um a destacar que a importância do esporte na vida dele vai muito além das premiações. “Com o esporte, alcancei lugares e possibilidades que jamais imaginei”, conclui, reforçando a narrativa.

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