Maré tem onda de incentivo à leitura durante a pandemia

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Bibliotecas comunitárias, espaços de leitura e doação de livros se multiplicam no Conjunto de Favelas da Maré

Por Hélio Euclides e Thaís Cavalcante em 03/12/2020 às 15h

Editado por Edu Carvalho

Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: as pessoas se libertam em comunhão” é o pensamento do educador Paulo Freire que está na placa da Biblioteca Comunitária Sementes, com sede na Baixa do Sapateiro. Essa e outras iniciativas são práticas de moradores que desejam multiplicar o número de leitores no território. Algumas das ações são ao ar livre, sem catálogo e bibliotecário, mas com o objetivo de que ocorra uma circulação de livros.

O país hoje conta com 52% de leitores, ou seja 100,1 milhões de pessoas, segundo a pesquisa “Retratos da leitura no Brasil”, feita pelo Instituto Pró-Livro em parceria com o Itaú Cultural, em 208 municípios de 26 estados entre outubro de 2019 e janeiro de 2020. Ocorreu uma diminuição de 4%, aproximadamente 4,6 milhões de leitores em relação à edição anterior da pesquisa, de 2015. Já a média de livros inteiros lidos em um ano se manteve o mesmo: 4,2 livros por pessoa.

Para aumentar esse número de livros por pessoa, surgiu em 2018, a Biblioteca Comunitária Semente. O nome é uma homenagem a vereadora Marielle Franco, assassinada no mesmo ano, mas que deixou uma semente plantada: sua luta. Os livros da biblioteca ficam em caixotes presos em uma parede da Rua Joana Nascimento, na Baixa do Sapateiro. A primeira versão era em uma estante. “No passado essa rua não tinha uma boa circulação, as pessoas tinham medo de passar. Hoje, além da biblioteca fizemos a limpeza, grafitamos, colocamos iluminação e com pneus fizemos uma arborização”, conta Mateus Duarte, um dos idealizadores. Além de promover a leitura, a biblioteca veio com a revitalização da rua.

Duarte tinha um trailer no local e sentia a necessidade de trazer vida para a rua, por meio dos livros. “Tinha uma estante para doação em São João do Meriti, então fomos buscar e trouxemos de ônibus. A partir daí cada amigo fazia alguma coisa, trazia livro e são dois anos de construção. O pensamento é que a rua faça a gestão, algo participativo”, comenta Osita da Silva, colaboradora da biblioteca. Ela acredita que pode ser um projeto piloto para o território. “Tinha que ter mais ambientes destes na favela. Falta locais de lazer na Maré, e com alguns caixotes e bancos, sem muitos gastos, iriam surgir alguns espaços de leitura”, expõe. 

Mateus Duarte e Osita da Silva, responsáveis pelo Espaço de Leitura na Baixa do Sapateiro, Maré. Foto: Hélio Euclides

Uma geladeira de livros

Já a Biblioteca Comunitária Nélida Piñon começou na casa de Geraldo de Oliveira, morador de Marcílio Dias, velho conhecido do Jornal Maré de Notícias. Depois a biblioteca se mudou por duas vezes, até funcionar no prédio atual, na Travessa Luiz Gonzaga 58, na Maré. Antes de ser biblioteca, o lugar era uma loja de refrigeração, no qual o antigo dono tinha deixado uma geladeira quebrada em frente. Oliveira procurou entregar o eletrodoméstico, mas não conseguiu. “Então veio a ideia de aproveitar a geladeira como ferramenta de saber. A biblioteca tem hora de fechar e as pessoas ficavam sem acesso aos livros, que são cultura e informação. Com a estante improvisada os leitores não ficam limitado ao espaço físico da biblioteca”, diz.

O projeto ”Pegue, Leve e Leia” começou em 2019 e funciona 24 horas, de segunda a segunda. Quem chega perto da geladeira se surpreende com um cartaz colado na porta: pegue e leve. No eletrodoméstico estão separados alguns livros por assunto. “Fazem parte do acervo da geladeira livros didáticos, romances, biografias, religiosos e o Maré de Notícias. Não há burocracia, o leitor leva e depois devolve ou troca, que é algo que fomenta a informação e estimulo ao protagonismo do morador”, conta. O projeto não deseja parar por aí, há o pensamento de criar dois outros pontos estratégicos em Marcílio Dias, mas para isso Geraldo precisa de mais geladeiras. É o lixo virando cultura e educação. 

Geraldo Oliveira: paixão pelos livros faz morador montar biblioteca com recursos próprios | Douglas Lopes

De acordo com a pesquisa “Bibliotecas Comunitárias no Brasil: impacto da formação de leitores” feita com a coordenação do Grupo de Pesquisa Bibliotecas Públicas do Brasil, mais da metade de bibliotecas comunitárias, cerca de 87%, estão localizadas em regiões periféricas com alto índice de pobreza, violência e serviços. Parte delas, foi criada pelos próprios moradores ou grupo de pessoas ligadas aos movimentos sociais locais.

Ainda que o poder público não invista o suficiente na criação de equipamentos culturais, artísticos e educacionais nas favelas e periferias, o poder da mobilização comunitária e da colaboração acontece assim que a população tem a necessidade de vivenciar uma nova iniciativa. Uma luta histórica na busca por soluções. Seja na criação de uma biblioteca, na prática de leitura compartilhada, doação de livros ou até  na participação de feiras livres de leitura. 

Incentivando leitores mirins

Outra iniciativa que vale a pena conhecer é a de Maryzete Farias, moradora do Parque União. Ela teve uma mudança de vida depois que conheceu o projeto Yoga na Maré e isso envolve a leitura dentro do território. Mais conhecida como Mary Roffe, ela voltou aos estudos para ser uma psicóloga e encontrou um novo rumo para sua rotina de dona de casa e mãe: a criação de uma biblioteca infantil. Tudo aconteceu muito rápido: o espaço do projeto foi doado pelo pastor da igreja de sua mãe e a busca por doação de livros continua, diariamente, pelas redes sociais.

Um mês depois da estrutura pronta, a Biblioteca Infantil Maré de Luz já possui o apoio de uma pedagoga, recebeu mais de 200 títulos, entre livros de histórias, livros de colorir e livros didáticos. “Quando veio esse desejo em mim, comecei a pedir doações e rapidamente muitas pessoas começaram a doar caixas de livros infantis, a começar pelos meus vizinhos. Chegou livros até da França”, conta. 

A biblioteca comunitária era um sonho de Mary há mais de dois anos. Com a inauguração marcada para o dia 12 de dezembro e as parcerias feitas para que a festinha tenha bolo, salgadinhos e brincadeiras para os pequenos, a intenção vai além. Ela pretende levar as crianças para passeios culturais e artísticos dentro e fora da Maré. “O que eu amo de verdade são crianças e livros. Sei que juntando as duas coisas vai dar  futuro, porque sei o poder que a leitura tem. Podem tirar tudo de você, menos o seu conhecimento”.

Biblioteca Infantil Maré de Luz será inaugurada em dezembro, no Parque União, Maré. Foto: Arquivo Pessoal.

O Maré de Notícias mapeou dez bibliotecas populares e comunitárias espalhadas por todo o Conjunto de Favelas Maré, no Rio, sendo elas iniciativas de moradores, instituições sociais ou organizações não governamentais, e a maioria inaugurada nos últimos 10 anos pelos mareenses. É possível pegar o empréstimo do livro gratuitamente ou até mesmo ler no local, caso tenha espaço de leitura disponível.

Conheça as Bibliotecas da Maré, seja para doar livros ou pegá-los emprestado. Faça uma visita depois da pandemia:

Biblioteca Comunitária Nélida Piñon

Travessa Luiz Gonzaga, 58 – Marcílio Dias

Biblioteca Comunitária Infantil Maré de Luz

Rua São Pedro número, 26 – Parque União (3° andar) 

Biblioteca Comunitária Semente

Rua Joana Nascimento, s/n – Baixa do Sapateiro

Biblioteca Popular Escritor Lima Barreto (Redes da Maré)

Rua Sargento Silva Nunes, 1.010 – Nova Holanda

Biblioteca Bela Maré (Galpão Bela Maré)

Rua Bitencourt Sampaio – Nova Holanda

Biblioteca Comunitária Luciana Savaget (Instituto Vida Real)

Rua Teixeira Ribeiro, s/n – Nova Holanda

Biblioteca Paulo Freire (CEASM)

Rua dos Caetés, 7 – Morro do Timbau

Biblioteca Popular Municipal Jorge Amado (Lona Cultural Herbert Vianna)

Rua Ivanildo Alves, s/n – Nova Holanda

Biblioteca Elias José (Museu da Maré)

Avenida Guilherme Maxwell, 26 – Baixa do Sapateiro

 Ônibus-biblioteca Livros nas Praças (Vila Olímpica da Maré)

Rua Tancredo Neves s/n – Nova Holanda

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