Mareenses temem tormento das quedas de energia

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Com a chegada do verão, moradores revivem a insegurança e o medo provocados pela instabilidade das instalações elétricas

Por Hélio Euclides

 “Vem chegando o verão/ O calor no coração”. A música Uma noite e meia, composta por Renato Rocketh e eternizada na voz da cantora Marina Lima, anuncia a proximidade da nova estação. Mas em parte da Maré, o que os moradores sentem no coração quando chega o verão é o medo de ficar no escuro. Uma das favelas mais prejudicadas é a Salsa e Merengue. 

“O verão todo ano é sinônimo de falta de luz à noite. Quando acaba geral, ainda é sorte. Certa vez foi embora apenas uma fase, foram 15 dias de tormento. A solução foi fazer uma vaquinha para comprar o cabo e um eletricista da comunidade colocar no lugar. O descaso é visível: são postes ainda de madeiras, outros tortos e cabos velhos cheios de remendos”, reclama uma moradora que preferiu não se identificar.

A coordenadora do Eixo de Direitos Urbanos e Socioambientais da Redes da Maré, Shyrlei Rosendo, quer “saber da Light como está a carga de energia, pois quando chega o verão falta luz direto. Isso ocorre pelo aumento a cada ano no número de habitantes da Maré e o fornecimento de energia precisa acompanhar isso”. 

Nem todas as favelas sofrem dos apagões. Luiz Gustavo, morador da Baixa do Sapateiro, diz que o fornecimento de energia é bem diferente na favela onde mora e naquela onde trabalha. “Na Vila dos Pinheiros a queda de luz é frequente. Falta por cerca de dois minutos e volta com toda a força. Acho que isso foi o que queimou a placa de um computador”, relata. 

O Parque União é outro lugar onde a falta de luz é constante. Isso é o que confirma Caitano Silva, social mídia da associação de moradores: “Pelo menos, sempre que é preciso a associação consegue falar com a concessionária. O atendimento às vezes demora; já chegou a sete horas de espera.” 

Melhoria depende do CEP

Francesca Pilo, pesquisadora de pós-doutorado na Universidade de Amsterdã, na Holanda, é a autora do estudo de 2016 Consumo de energia elétrica nas favelas e a transformação de “consumidores em clientes”. Nele, há o relato do ocorrido na favela Santa Marta em 2010, quando a antiga rede de distribuição foi substituída por uma subterrânea. A nova rede ganhou 3.200 quilômetros de cabos, 19 transformadores e 63 postes de fibra substituindo os antigos, de madeira. A obra dobrou a capacidade de distribuição de energia e levou a melhorias na qualidade do serviço. 

Enquanto em 2009 a interrupção do fornecimento de energia foi de 29 horas, em 2011 faltou luz por oito horas durante o ano inteiro. Entretanto, a qualidade do serviço ainda não se aproxima ao do bairro de Botafogo, que experimentou pouco mais de duas horas de interrupção do fornecimento de energia no mesmo período.

A diferença no tratamento a depender do CEP dentro do município ficou bem caracterizado quando os centros de alguns bairros, incluindo Bonsucesso, foram submetidos a uma intervenção urbana no período de 1995 a 2000. O Projeto Rio Cidade previa a modernização dos serviços, como o cabeamento de telefonia, iluminação pública e fornecimento de energia. Toda a fiação foi trocada e passou a ser subterrânea. 

Se em Bonsucesso foram instalados 4.670 metros de dutos da Light, as favelas continuaram a viver sob um grande emaranhado aéreo de fios e cabos remendados, trazendo riscos aos moradores. 

Distração fatal

Na Maré, o crescimento vertical levou à perigosa proximidade entre algumas casas e os cabos de energia. Os pedreiros são os mais prejudicados, trabalhando com possibilidade de acidentes. Nestes casos, uma distração pode ser fatal. 

Foi o que ocorreu em abril de 2012 com o pedreiro Paulo Roberto do Carmo. Ele realizava obra no Parque União quando escorregou do andaime e caiu por cima dos fios. Na época, a Light informou que havia sugerido a interrupção da obra, porque só assim seria possível realizar o devido isolamento. O Corpo de Bombeiros alerta que, ao trabalharem próximo à rede elétrica, pedreiros liguem para a Light para que a concessionária desligue a rede elétrica ou isole os cabos.

Mas não são apenas os profissionais responsáveis por obras que sofrem com o descaso com as instalações elétricas nas ruas. Em setembro de 2021, uma menina de sete anos queimou-se seriamente ao chegar perto de um cabo de média tensão no Salsa e Merengue. Ela acabou perdendo um braço e três dedos do pé.

“Foi tudo rápido, eu estava instalando uma porta quando ela subiu para o terraço, pegou um pedaço de ferro e o aproximou do fio — nem chegou a tocar”, conta Danilo dos Santos Pinheiro, pai da menina. Ele reclama que os cabos de energia da favela são desencapados e a rede precisa de uma reformulação. 

“A minha luta hoje é para que a Light faça alguma coisa em relação ao cabeamento que, por ser antigo, não tem mais isolamento. Já são cinco acidentes com mutilações no Salsa e Merengue; duas pessoas morreram. Espero que isso não venha a acontecer com outros inocentes”, diz ele.

Danilo critica a Light por não fazer nada com relação à filha dele: “Tive que arcar com todas as despesas. Sei que nenhuma quantia vai reverter o dano que foi causado à minha filha.” Sua mulher, Angélica Pinheiro, também se sente desamparada. “Eles têm conhecimento dos riscos e não fazem nada para trocar os cabos. Quantas pessoas ainda vão ser mutiladas ou mortas para que se faça algo?”, questiona. 

Vista encoberta por fios já começa a ser eliminada em algumas partes do Rio de Janeiro, mas mudança ainda não chegou na favela – Foto: Elisângela Leite

Oscilação incendiária

Este ano, os moradores do Bloco 4 do Conjunto Pinheiros passaram por um susto quando o quadro de luz pegou fogo. Muitos tiveram que pular pela janela ou sair pelo buraco do ar-condicionado para fugir do fogo e da fumaça tóxica que tomou conta do lugar. 

“Aqui a energia oscila muito, essa variação pode ter ajudado no acidente. Por sorte não houve vítimas. A recuperação do quadro ficou em cerca de R$ 20 mil, e há uma promessa de que isso seja incluído na reforma dos prédios feita pelo governo do Estado”, conta o morador Francisco Ricardo.

O susto mais recente aconteceu no último dia 17 de novembro: um poste em frente à Escola Municipal Tenente General Napion, em Roquete Pinto, pegou fogo, assustando alunos e funcionários. A unidade teve que interromper as aulas. Uma professora que preferiu não se identificar disse que a Light chegou duas horas depois do chamado. 

“Tivemos que cancelar a participação de algumas instituições na Feira de Ciência Integrada Etnicorracial, que ia acontecer no dia seguinte. Pelo horário, ficamos com medo de a luz não voltar. Foi feita uma ligação direta pela empresa, pois o relógio de luz não suporta o uso da unidade. Não conseguimos usar o ar-condicionado nas salas, pois a Light até hoje não colocou um medidor ideal que comporte a carga”, explica a professora.

A Light informou que existe um elevado número de ligações clandestinas na localidade que impactam na qualidade do fornecimento de energia, o que explica as oscilações de energia reportadas. A empresa tem um plano de manutenção permanente da sua rede e só atua em localidades onde exista segurança para que  seus técnicos trabalhem.

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