Mulheres Ceramistas da Maré fazem oficina de cerâmica negra, alternativa para artesãs neste fim de ano

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Grupo de mulheres ceramistas existe há quase 20 anos estimulando a autonomia das moradoras da Maré

Por Thaís Cavalcante em 26/12/2020 às 10h

Editado por Edu Carvalho

Maria Evangelista e Glória da Conceição são apresentadoras da Oficina de Cerâmica Negra online. Foto: divulgação.

Única iniciativa que estimula a produção de cerâmica negra em uma favela no Rio de Janeiro, o projeto Mulheres Ceramistas da Maré, com sede na Vila do João, abre inscrições para sua oficina gratuita e online. As mulheres empreendedoras se dedicam ao estudo e aplicação da técnica há quase 20 anos, promovendo o trabalho artístico e vivendo a transformação de suas vidas antes expostas à vulnerabilidade social.

As vídeo-aulas foram preparadas para iniciantes e traz a história da cerâmica, das alunas e materiais para a produção de um produto final, que é um vaso simples. O curso teve a apresentação de suas ex-alunas, hoje professoras. O formato foi uma alternativa ao interrompimento das atividades presenciais por causa da pandemia.

Maria Evangelista e Glória da Conceição, são ex-alunas e atuais professoras da técnica. Ambas são migrantes da região nordeste e vieram morar na Maré em busca de uma vida melhor. Artesãs, elas sentiram a diferença do trabalho de costureira com o de ceramista, que é mais agitado. “Eu quase não conseguia dormir, eu estava sonhando com isso aqui. Aqui a gente se movimenta, conversa, ri. Eu adorei e minha primeira peça foi uma cabaça”, conta Maria. O professor a incentivou e pediu mais peças, que seriam vendidas logo depois. 

A dupla faz parte das 10 alunas que passaram a ensinar umas às outras. Atualmente são 14 mulheres se adaptando ao “novo normal” imposto pela pandemia. Os desafios foram enormes no início: a suspensão de feiras de artesanato e o distanciamento social impactaram diretamente a fonte de renda das artesãs, assim como o isolamento e a falta de convívio.

A iniciativa de cerâmica faz parte do Projeto Maré de Artes e Esportes (MAE), da Organização Não Governamental Ação Comunitária do Brasil, que atua na Maré e na Cidade Alta desde os anos 60 com núcleos de cidadania. Com a falta de incentivo cultural da cidade carioca, desde 2018 o projeto enfrenta uma dificuldade de demanda e também de patrocínio cultural. Mas resiste. 

Ceramistas e produtores se reuniram durante a pandemia para gravar as aulas online. Foto: Divulgação.

Ressignificando a vida com o artesanato

Flávio Rocha, um dos produtores culturais do projeto Mulheres Ceramistas da Maré, diz que está fazendo um movimento interno para que as mulheres sejam ainda mais independentes em seus trabalhos, usando o empreendedorismo como ferramenta de autonomia financeira. “Preservamos as identidades das alunas que estão em maior vulnerabilidade emocional, social e psicológica. O que a gente faz é estimular a autoestima daquela mulher, para que ela se coloque forte e saia da posição difícil em que ela está. A gente conversa sobre exemplos de vida e vai gerando outras possibilidades”, conta.

Mais da metade dos artesãos brasileiros são mulheres acima de 50 anos, segundo pesquisa com comerciantes de artesanato do Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas). Não à toa, o público escolhido pelo projeto de cerâmica envolve mulheres, idosas em vulnerabilidade e que sejam mareenses. Uma atuação necessária: de acordo com o Censo Maré, a população potencialmente inativa do território são crianças e idosos. “Esse é um dos grupos que não são tão abraçados pela cultura e arte. Os projetos para a terceira idade ficam sempre no âmbito do lazer. A cerâmica é uma forma de se especializar e resgatar a autonomia”, diz Flávio. 

Atingir mulheres em vulnerabilidade social e vítimas de violência doméstica foi o objetivo do projeto desde sua criação em 2002. A caminhada é tão longa que o grupo coleciona prêmios e exposições: Prêmio Sebrae Top 100 de Artesanato, exposição no Serviço Social do Comércio (Sesc), Espaço Cultural CEDIM Heloneida Studart, Espaço Cultural Zumbi dos Palmares da Câmara dos Deputados, entre outros locais. 

Com sede na Vila do João, uma das 16 favelas da Maré, a Ação Comunitária do Brasil promove um trabalho focado na cultura negra e com possibilidade de venda. Em períodos de alta produção, as ceramistas chegam a vender mil peças por ano. Entre os clientes, já passaram empresas famosas como a Casacor, Record e a Rede Globo. Glória da Conceição admite com orgulho: “Também tivemos prêmios de reconhecimento. É muito gratificante ver o nosso trabalho sendo exposto para o mundo, é como se a gente tivesse ganhado na loteria”.

A argila é a matéria prima na produção da cerâmica negra. Foto: Divulgação.

Resgate da cultura negra e africana

Dentre tantos materiais, as mulheres focam na produção de cerâmica negra por um motivo: resgate da memória. A matéria prima da cerâmica negra é a argila, artesanato retratado na pré-história da humanidade. O curso online fala sobre a história milenar e tem seu recorte indígena, africano e português, que está em todo o processo de aprendizado das alunas artesãs. A cerâmica negra não é pintada, sua tonalidade escura existe porque a queima é diferente das demais cerâmicas vermelhas, por exemplo. Para a queima da argila, é necessário um forno específico de temperatura em até 800 graus. Assim, cada peça se torna única, pois além dos moldes específicos, tem o tom dado pelo fogo e uma fragilidade artística e física, como uma louça. O recorte negro foi feito por um professor e isso se tornou o diferencial do projeto, falar da cultura negra em cada detalhe: no aprendizado, nas peças e no fortalecimento da história.

Em 2021 isso continua sendo prioridade e os planos não param: além da volta das feiras de artesanato de rua e da oficina online, a iniciativa pretende se manter ainda mais presente virtualmente e no incentivo à autonomia de suas alunas e professoras. Vai apostar no e-commerce, ou seja, nas vendas online das cerâmicas negras, que não puderam ser vendidas neste período de pandemia, mas que encantam os olhares por onde passam. “O que importa é o encontro das mulheres, risos altos. Esse é o resgate: elas saberem que não estão sozinhas. Mais do que a técnica em si, estar junto, é o principal legado do movimento de cerâmica”, admite Flávio.

Para aquisição de peças, basta entrar em contato no e-mail [email protected] ou no Instagram @projetomae.rj.

E se você ficou com vontade de ser um estudante da 1a edição da Oficina Mulheres Ceramistas da Maré e receber os conteúdos online, inscreva-se aqui. As aulas têm a participação da Só Produções, Keratuar Produções, apoio do Instituto Invepar e Prefeitura do Rio, patrocínio da LAMSA e realização do Instituto Musiva.

Você sabia?

A palavra “cerâmica” vem do grego “kéramos”, que significa argila queimada. Ela é o objeto artificial mais antigo já feito pelo ser humano. Há indícios de ter existido cerca de 15 mil anos atrás. Inicialmente pensada como utensílio de armazenamento de alimentos, hoje a cerâmica é facilmente encontrada em museus como peça de arte, cultura e resistência de seus produtores e artesãos.


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