Mulheres mães que tiveram seus caminhos atravessados por falhas políticas de segurança pública contam suas histórias sobre como resistem e dão novos rumos às suas vidas
Maré de Notícias #110 – março de 2020
Flávia Veloso e Miriam Krenzinger
Nos últimos 20 anos a cidade do Rio de Janeiro vem sendo palco de vários movimentos e coletivos de mulheres – mães e familiares moradoras de favelas e da periferia – que se organizam na luta diária pelo acesso à justiça, à reparação e ao direito de preservarem a memória dos entes queridos que foram brutalmente feridos ou mortos em decorrência dos confrontos entre grupos armados – policiais, milícias e traficantes.
Frente à ausência de apoio das instituições governamentais, de reconhecimento das violações e dos danos causados por parte de agentes do Estado, algumas mulheres-mães têm se articulado para fortalecer a forma de lidar com as dores e os sofrimentos gerados pela violência institucional e violência das armas. Alguns desses grupos resistem há anos e servem de exemplos para outras mães e mulheres, como o Mães de Manguinhos, Movimento Moleque, Mães de Maio (SP), Mães da Maré, entre diversos outros coletivos que seguem na mesma luta.
Resistência e luta
E muitas mulheres, como Bruna e Mônica, (depoimentos em destaque) que lutam por memória, respeito e reparação, encontram diversas barreiras institucionais e resistências por parte dos agentes do Estado para acessarem a Justiça e o sistema de garantias individuais e sociais. Além do medo de se exporem, o descrédito nos órgãos da Justiça decorre, principalmente, da total falta de transparência das informações e de providências efetivas que poderiam/deveriam elucidar as violências sofridas por seus familiares.
Nesse cenário, destaca-se o projeto de Olho da Maré, uma iniciativa do eixo de “Segurança Pública e Acesso à Justiça” da Redes que busca sistematizar dados sobre os confrontos bélicos que envolveram grupos armados e forças policiais. As informações são publicadas anualmente desde 2017 no Boletim “Direito à Segurança Pública na Maré”. O monitoramento busca dar visibilidade ao conjunto de violações de direitos fundamentais sofridas pelos moradores das 16 favelas do Complexo da Maré para, a partir disso, subsidiar o movimento das mulheres mães da Maré vítimas do Estado, bem como, pensar a implementação de políticas públicas que tenham como prioridade garantir da vida da população.
Vítimas de violações
Os dados publicados nas quatro edições do Boletim, entre 2017 e 2020, revelam um quadro dramático sobre a violência armada e institucional que atinge nossos/as moradores/as: 132 pessoas foram mortas, 121 feridas. Nossas crianças ficaram 89 dias sem acesso às escolas e mais de 60 mil atendimentos deixaram de ser prestados nos 101 dias em que as unidades de saúde ficaram fechadas. Somente em 2019, houve 117 dias de tiroteios em diferentes partes da Maré, englobando os que ocorreram durante operações policiais ou em ações das redes ilícitas e criminosas.
As vítimas de letalidade violenta são, em maioria, jovens pardos e negros, representando 94% casos. Esta informação está diretamente correlacionada ao sofrimento de mães e mulheres familiares que perderam filhos, netos, irmãos ou maridos, num contexto em que não há garantia, mínima, do acesso justiça e ao direito à segurança.
A luta ainda é delas
E vale ressaltar que, mesmo nos casos de violações de direitos cometidas contra homens, geralmente, são as mulheres que buscam acolhimento e orientação psicossocial e jurídica junto a projeto Maré de Direitos[1] da Redes da Maré. Quando olhamos, ainda, para outras formas de notificações sobre violações de direitos fundamentais, identifica-se que são as mulheres registraram 58% das ocorrências.
Os dados e, assim como, os depoimentos demonstram a relevância dos movimentos das Mulheres-familiares-Mães que ao criarem espaços de partilha de trajetórias singulares, que ao mesmo tempo são muito similares, sensibilizam outras mulheres a aderirem às suas lutas por mais justiça. De forma coletiva, as mulheres unidas ficam mais fortalecidas para fazerem os registros e denúncias das violências sofridas (por familiares) e do genocídio, em curso, de jovens moradores da Maré. As três narrativas indicam o quanto o território dominado pelo confronto das armas, que fere e deixa marcas permanentes nos seus locais de moradia e nas suas famílias, pode ser também o território da solidariedade, da ajuda mútua, da convivência acolhedora que possibilita reviver a presença de quem partiu gerando memória, respeito também fortalecimento para si. Segundo Bruna Silva,“ juntas somos mais fortes. Não merecemos o fim que nossos filhos tiveram. Merecemos viver com dignidade. Todas as vidas importam isso é pelo que a gente briga”.
E é, justamente, por meio da troca de afetos com outras mulheres que também passaram pela mesma situação, que Mônica consegue se fortalecer: “O que te faz não enlouquecer de vez, não se internar dentro de casa, não se suicidar ou se deixar morrer, é a companhia das outras, a força das outras que têm a mesma dor que você, que passa pelas mesmas violações. Essa troca me ajuda a equilibrar minha saúde mental, me faz pensar que eu posso de alguma forma continuar a viver. Você pode passar um batom, fazer as unhas, o cabelo, pode sorrir, sair para dançar, ter um relacionamento, pode viver, ter momentos felizes, mesmo com essa dor”, observa Mônica.
Os três depoimentos a seguir de mães tiveram filhos vitimados pela violência do Estado ilustram suas dores e suas lutas.
Sete meses sem conseguir atendimento médico
Laurizete Pereira dos Santos há mais de sete meses tenta fazer com que seu filho consiga tratamento médico. Tudo começou em julho de 2019 quando Isaac foi ferido por uma bala, durante uma operação policial na Baixa do Sapateiro, na Maré, que atingiu sua coluna e o sistema digestivo, fazendo com que ele perdesse força das pernas e abrindo um grande ferimento na barriga. Isaac teve o sistema digestivo operado e ficou internado por duas semanas no Hospital Evandro Freire. Desde então, o rapaz vem sendo tratado em casa por Laurizete. Os cuidados da mãe conseguiram que o ferimento fosse cicatrizado, mas a recuperação de Isaac parece ainda distante. Impossibilitado de andar, fazer esforços e com o sistema digestivo lesionado internamente, Laurizete vive para cuidar do filho: “Depois que isso aconteceu com ele, fiquei três meses com os hormônios desregulados por causa do estresse. E minha luta tem sido sozinha, porque o pai e o irmão dele saem para trabalhar. Nossa vida mudou. Eu passo madrugadas acordada com ele, porque muitas vezes não consegue dormir. Meu sono vem, mas eu preciso estar ali cuidando dele”. (Laurizete Pereira dos Santos, moradora do Parque Maré)
Todas as vidas importam
Bruna Silva, em 2018, perdeu seu filho Marcos Vinícius, de 14 anos, durante uma operação policial na Maré. O garoto estava a caminho da escola, quando foi alvejado por um tiro disparado por um agente da Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE). O caso repercutiu nas mídias e a mãe de Marcus Vinícius decidiu não se calar, iniciando uma trajetória de trabalhos e ações na área da segurança pública.
Bruna escolheu a luta também para preservar a memória do filho, junto a uma rede de apoio com outras mães e mulheres: “A gente se enterra em casa quando enterra um filho, automaticamente a gente morre com ele. Mas eu digo que é preciso que a gente viva, resista. A maneira que eu encontrei de não adoecer foi dando suporte a essas mães que passam pela mesma situação” . (Bruna Silva, ativista do Coletivo Mães da Maré)
“Primeiro você destrói o humano, para depois justificar o corpo no chão”
Rafael da Silva Cunha tinha 15 anos quando foi apreendido pela polícia e levado à 4ª Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), na Avenida Presidente Vargas, por ter cometido um ato infracional. Rafael foi condenado a cumprir medidas socioeducativas no Centro de Socioeducação Dom Bosco na Ilha do Governador. Foi nesse momento que a luta de sua mãe, Mônica Cunha, começou. Após a primeira entrada, Rafael passou mais três vezes pelo sistema socioeducativo do Estado. Aos 20 anos, Rafael foi morto pela polícia quando já estava rendido. Nessa época, Mônica decidiu criar uma rede informativa com o objetivo de conscientizar outras mães sobre os direitos de seus filhos menores de idade em conflito com a lei. Assim nasceu o Movimento Moleque, que existe até hoje. (Monica Cunha- líder do Movimento Moleque)