Daniele Moura
Pode entrar. Por aqui, arte, na Favela da Maré, você tem espaço. Em tempos de censura à arte, inconstitucional vale destacar, em alguns museus de capitais brasileiras, a Maré, com liberdade, abre as portas de seus espaços culturais para receber duas grandes exposições em homenagem ao Dia da Consciência Negra. A vida da escritora, professora de escola pública e ativista do movimento negro, Conceição Evaristo, é apresentada ao público do Rio de Janeiro até o dia 10 de dezembro, no Centro de Artes da Maré. São textos, manuscritos de cartas e poemas que fazem o visitante viajar para a favela mineira em que a escritora cresceu. Graças à sua mãe, a lavadeira Joana Josefina Evaristo Vitorino, Conceição cresceu rodeada de palavras. A matriarca, inspirada em Carolina Maria de Jesus, escrevia em cadernos recolhidos nas ruas, os pensamentos sobre o dia a dia, as dificuldades da vida na favela, poemas e frases soltas. Uma inspiração e tanto para uma criança curiosa.
Conceição, que nasceu numa favela da Zona Sul de Belo Horizonte, vem de uma família muito pobre de 9 irmãos. Desde de muito cedo, teve de conciliar os estudos trabalhando como empregada doméstica, até concluir o curso Normal (magistério), em 1971, já aos 25 anos. Mudou-se então para o Rio de Janeiro, onde lecionou em escolas públicas de favelas e periferias, além de estudar Letras na UFRJ. Nos anos 1980, entrou para o movimento negro e, em 1990, estreou na literatura, com obras publicadas na série Cadernos Negros. A escritora é doutora em Literatura pela Universidade Federal Fluminense. Suas obras abordam temas como a discriminação racial, de gênero e de classe e já foram traduzidas para o inglês. Uma referência de mulher negra.
O trabalho educativo
Na Exposição, exemplares de publicações reconhecidas, como “Ponciá Vicêncio”, seu primeiro romance, “Becos da Memória”, “Poemas da Recordação” e “Outros Movimentos” e os livros de contos “Insubmissas Lágrimas de Mulheres”, “Olhos d´Água” e “Histórias de Leves Enganos e Parecenças”, estão à disposição do visitante de todas as idades, incluindo estudantes que também podem participar de atividades educativas. Ian Alex dos Santos, de 10 anos, ficou feliz em saber que há uma referência negra na literatura. “Eu acho bom saber que é possível uma pessoa negra estar escrevendo e ser famosa. Eu achei muito legal”. Já Mateus disse que saiu mais sabido da Exposição. “Aprendi sobre racismo para não ficar zoando os outros por cauda da cor. Não leva a nada”, disse o menino.
Três vídeos foram produzidos especialmente para a Mostra. Um deles traz imagens de Conceição Evaristo em diferentes situações, com a voz da autora declamado trechos de suas obras e falando sobre a sua vida. Outro, registra a leitura feita por ela de trechos do livro “Becos da Memória”, explicando o contexto em que o livro foi criado. O último tem depoimentos de professoras e alunas de escola do Rio de Janeiro sobre a literatura da escritora mineira.
A professora da Rede Municipal de Ensino, Bruna Bastos, levou sua turma para conhecer a Exposição. “Eles amaram, eu também. Me emocionei com o poema que ela faz referência à avó. A gente sempre pode ter exemplos de gerações mais antigas para melhorarmos. Falo isso muito para meus alunos. Sempre é possível.”
Pamela Carvalho, que trabalhou por dois anos no MAR, Museu de Arte do Rio, está agora no educativo desta Exposição na Maré. “A coisa mais importante é estar nesse território, estamos na favela da Nova Holanda falando de uma mulher negra, potente, que pode ser a referência de identificação para muitas crianças daqui. Eu nasci na favela, cresci na favela, não me lembro de ter sabido de uma Exposição como essa acontecendo em territórios de favela no Rio. Essa história que estou vivendo é um marco na existência dessas crianças e das pessoas que por aqui moram”- completou.
A Mostra transpira as “escrevivências” de Conceição, como ela mesma se refere ao seu trabalho – uma escrita que nasce das vivências, vivendo para narrar, narrando o que vive. Toda a sua obra é permeada por questões raciais, de gênero e de classe, explorando, sobretudo, a condição e a complexidade da mulher negra. Seus romances, contos e poemas revelam a condição dos negros no Brasil, e podem ser considerados como grandes ferramentas na luta contra o racismo e o machismo, tão presentes na sociedade. “Minha escrevivência vem do cotidiano dessa cidade que me acolheu há mais de 20 anos e das lembranças que ainda guardo da minha”, diz a escritora, que hoje mora no Rio.
A poucos passos dali, também é possível refletir sobre machismo e racismo. No galpão Bela Maré, a Mostra “Diálogos Ausentes’, em parceria com o Observatório de Favelas, apresenta obras de 17 artistas negros brasileiros das artes visuais, cênicas e do audiovisual, entre individuais e coletivos, como André Novais, Eneida Sanches, Dalton Paula e Coletivo Negras Autoras.
A Exposição trata das questões raciais traduzidas em objetos, instalações, vídeos, performances, fotografias, esculturas e projeções, e foi fruto de uma série de encontros realizados durante este ano e o ano passado, com o objetivo de analisar a representação dos negros nos diversos segmentos artísticos e expressões culturais. No Rio, a edição desta Mostra conta com obras que não foram vistas em São Paulo, de Eustáquio Neves, Heberth Sobral e Gessica Justino – esta última é carioca, como Yasmin Thayná e Aline Motta também com trabalhos ali presentes. A curadoria da Mostra Diálogos Ausentes é de Rosana Paulino e Diane Lima.
Tanto a Mostra do Centro de Artes, quanto a do Observatório de Favelas passaram pelo Itaú Cultural em São Paulo e vieram, especialmente, para a Maré. São mais de 300 visitantes por semana que os dois centros culturais estão recebendo nas Mostras. “Tem sido muito significativo, a gente não tem registro na cidade de exposições com obras feitas por artistas negros, falando para o negro sobre questões que envolvem o negro de favela. A única é esta aqui, e é um assunto que precisa cada vez mais ser falado, disse Michele Barros, educadora do Galpão Bela Maré.