Por Jorge Melo e Hélio Euclides em 13/05/22 às 07h
A marcha nupcial toca e ali começa o casamento. Depois, com a visita da cegonha, surgem os filhos e a casa tem que crescer juntamente com a família. A tradição nas favelas e na Maré é que a chegada de mais integrantes provoque a transformação de casas em prédios para abrigar os filhos. A parte térrea pode levar várias gerações para ser construída, mas depois que a laje é posta, os filhos botam a mão na massa, pedem ajuda de amigos e contratam pedreiros para as tarefas mais difíceis — toda a logística para viabilizar novos andares, em um processo conhecido como verticalização.
O termo se refere ao processo de crescimento das cidades para cima. Alexandre Silva é pedreiro há dez anos na Maré e sabe muito bem como se dá essa ampliação, conhecida como “puxadinho”:
Comecei a construir casas há oito anos. O que percebo é que a maioria das obras é familiar. O pai e a mãe constroem um segundo andar para o filho. Eu sou um deles, fiz um puxadinho para o meu filho. Isso também aconteceu na casa dos meus irmãos. Na Maré, muitas das construções são familiares, com casas de dois ou três andares, com presença de parentes”, explica.
Alexandre Silva é pedreiro há dez anos na Maré
Na edição 39, de março de 2013, o Maré de Notícias mostrou o crescimento horizontal de Marcílio Dias. Com o passar do tempo, os barracos foram sumindo e deram lugar às casas de alvenaria e depois, veio a troca de telhas por lajes, o que facilitou a ampliação das residências. Outros fatores que fizeram com que o desenvolvimento imobiliário da favela tomasse outros rumos foram a diminuição de espaços vazios, a redução na oferta de casas e o baixo poder aquisitivo. Hoje já é possível perceber o morador ampliando seu lar através de um segundo pavimento no imóvel.
Foi o que aconteceu com Sara Oliveira, moradora da Travessa Villa-Lobos, em Marcílio Dias. “Minha mãe me apoiou desde o início. Ela foi a maior incentivadora para eu fazer em cima. Eu ia morar de aluguel e ela me deu essa opção; abraçamos essa solução por conta da situação naquele momento”, lembra. Ela percebe outros casos iguais na favela: “Vejo que algumas conhecidas, que não têm condições de pagar um aluguel ou fazer outra coisa, acabam ficando na casa dos pais por motivos financeiros.”
Puxadinho legalizado
Segundo a Lei 13.465/2017, o proprietário de uma construção-base poderá ceder a superfície superior ou inferior de sua construção para que o titular da laje mantenha unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo. A lei favorece o fenômeno da verticalização e ainda promove o mercado imobiliário local. Contudo, barreiras comprometem a efetividade da aplicação do direito de laje à realidade dos lugares mais pobres. A lei traz burocracia nos processos de regularização, como a obrigação de abertura de matrícula no cartório do registro de imóveis; para realizar o puxadinho, é preciso também obter a autorização junto ao poder público. Essas obrigações são impossíveis de serem cumpridas já que casas localizadas nas favelas não têm documentação de titularidade, apenas registro nas associações de moradores.
Uma esperança para a legalização veio pelo Decreto 47.796/2020, mas a alegria durou pouco. Criado em meio à pandemia com o objetivo de utilizar recursos advindos da sua aplicação para suprir as necessidades financeiras do município no custeio das ações emergenciais, ele regulamentava o licenciamento e a legalização de construções no município do Rio de Janeiro. O Supremo Tribunal Federal (STF), porém, manteve a liminar do Tribunal de Justiça fluminense que suspendeu a aplicação do decreto.
Uma Maré bem familiar
Maria José Horsth se lembra do tempo que o território tinha poucas habitações — para sermos mais exatos, há 63 anos. Hoje, com 84 anos, ela recorda o dia em que saiu de Minas Gerais para a Maré, onde morou nas ruas Santa Luzia e Teixeira Ribeiro, no Parque Maré. Mas há 51 anos trocou de favela: hoje, ela mora na mesma casa na antiga Rua 25 de dezembro (atual Rua Valdeley Gomes Barcelos), na Nova Holanda: “Eu dizia para o meu marido: só saio daqui quando a favela for abaixo. Por isso estou até o momento.” No começo a sua casa era de paredes e assoalho de madeira, ainda palafita.
Depois que o terreno foi aterrado, ela construiu uma casa de alvenaria — uma melhoria na qualidade de vida do casal e da prole. Com o crescimento dos seis filhos, surgiram mais dois pavimentos, ocupados em rotatividade pela nova geração. “Queriam fazer um quarto andar, mas meu marido deixou claro que a estrutura só suporta o que foi feito”, conta. Ademir Adolfo, quando era vivo, tinha como profissão pedreiro e acabou fazendo muita casa na Nova Holanda. “Era caprichoso e ensinou a profissão para muita gente”, relembra sua viúva.
Um das filhas do casal, Maria da Penha Horsth, já morou em Paty do Alferes, mas retornou para a Nova Holanda para ocupar o segundo andar da casa. Depois de enviuvar, ela desceu as escadas para ficar com sua mãe no térreo: “Aqui é o melhor lugar para se viver, encontro tudo aqui, o comércio é ótimo. Sobre morar com a família é muito bom, pensa no aniversário, um motivo para fazer um churrasquinho e a casa encher de parentes.” Dona Maria José é a moradora mais antiga da rua. “Me sinto milionária com os amigos que tenho”, diz a matriarca da família, que tem 15 netos e 10 bisnetos.
Edificação segura
Na favela, a ausência de espaço empurra o crescimento dos imóveis para cima, e a grande preocupação é o uso de material inadequado, o que pode ocasionar desabamentos com o tempo. Segundo o engenheiro civil do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio de Janeiro (Crea-RJ) Antônio Eulálio, a Maré é uma zona de mangue que, para ser habitada, passou por aterramento. Por isso, a fundação das casas é essencial. “Quando chove forte, há alagamentos e isso pode danificar as casas. Outro problema é a verticalização dos imóveis e as casas coladas, o que pode resultar, se um prédio cair, em um efeito castelo de cartas”, explica, acrescentando que é preciso sempre procurar por ferros à mostra, tubulações ruins e lajes não impermeabilizadas — tudo isso leva à corrosão das estruturas da edificação.
Para o engenheiro, a melhoria na qualidade da moradia depende de políticas públicas: “Nas favelas, gasta-se um exagero com materiais de construção, mas há dúvidas na qualidade do que é empregado na obra. A prudência é fundamental quando falamos de um terreno que afunda ou de casas trincadas. A solução seria a urbanização e a pavimentação das favelas, mas não vejo apoio do poder público para que isso aconteça.” Ele se preocupa com a verticalização. “Na Maré, o máximo que pode existir é imóvel de três pavimentos, já que o aterramento é de argila mole. Além disso, só acreditando em Deus. As obras precisam de um estudo geotécnico”, conclui.
A arquiteta e urbanista Maira Rocha Mattos, membro do Conselho Federal de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR), defende que é preciso se resguardar antes de construir, para evitar os riscos de desabamento e de movimento da terra. No caso da verticalização, é preciso entender que o andar do térreo pode não ter sido construído para suportar mais pavimentos.
“Para reverter isso é preciso que o poder público acompanhe o crescimento geográfico da cidade. Também é necessário um programa de reforma, visando uma intervenção habitacional para a melhoria na qualidade de vida de quem mora nas faelas, com casas que sejam salubres, com iluminação natural e ventilação. Isso é possível por meio da Lei 11.888, que ainda é pouco aplicada”, explica.
Para o CAU/BR, a construção para o alto é uma necessidade e uma forma de sobrevivência. “Esse processo tinha que ser acompanhado por um engenheiro ou arquiteto, mas sabemos que a população pobre não tem acesso a esses profissionais. Também não se pode achar que a remoção é a solução, pois isso acarreta o rompimento da socialização. O direito à moradia para cima ou para os fundos tem que ser visto por uma perspectiva sensível e jamais penal”, acredita a urbanista.