Nzaje: a cultura como refúgio

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Artista mostra como a multiculturalidade é o fertilizante ideal para o desabrochar de talentos

Maré de Notícias #107 – Dezembro de 2019

Nicolas Quirion*

Nzaje Vieira Dias, 21 anos, é um dos integrantes do novo espetáculo da Cia Marginal. Nascido em Angola, veio para o Brasil com apenas 2 anos de idade, junto com os pais. Mas não nos enganemos! Como faz questão de reivindicar, o chão dele é aqui: “Eu sou criazão da Maré! Muito cria. Não tem nem como… conheço tudo de ponta a ponta.”

Porém, em terras cariocas, Nzaje cresceu num caldo multicultural caraterístico: “Minha família toda é de artista”, conta ele. “Dentro de casa, a cultura sempre foi africana. Quanto mais eu puder manter essa cultura em mim, melhor. Da porta pra fora, tem o Brasil; e da porta pra dentro, é outra coisa.”

Ainda adolescente, Nzaje encontrou na Maré um terreno propício para desenvolver seus talentos. O projeto “Percussão Maré”, promovido pelo seu padrinho – o músico angolano Abel Duërë – ofereceu-lhe uma ótima oportunidade de esquentar os tambores. No âmbito das oficinas, vários profissionais de destaque vinham até a Vila do João para iniciar os jovens nas técnicas musicais. Para Nzaje, a experiência foi determinante: “Teve um dia que veio um professor novo, que trouxe pedestal, microfone e guitarra. Desde esse dia, já era. Eu lembro até hoje, quando cantei naquele microfone. Mano, não sei o que aconteceu aqui. Em menos de um ano, já estava com uma banda fazendo shows.”

A Banda “Crônicos” nasceu como consequência desse afã criativo. Inicialmente formada por Nzaje e seu irmão, a formação ganhou rapidamente a participação de um violonista e um percussionista, assim como a vocalista Caê. “Ela é de mãe índia, da tribo Guajajara do Maranhão, mas é ‘cria’ da Maré também”, explicou Nzaje. Para ele, a mistura cultural pulsante no grupo fazia todo o sentido, pois “os africanos e o brasileiros compartilham uma mesma história, a colonização e a escravidão. Eu acho que é bom manter essa cultura ancestral, tanto africana quanto indígena.” A banda de hip-hop alternativo, que se destacava pelo uso de instrumentos acústicos, chegou a se apresentar em inúmeros eventos dentro e fora da Maré, durante os seus quatro anos de atividade.

Mais recentemente, depois de intensa participação nas batalhas de rimas cariocas, Nzaje tem investido numa profícua carreira solo no universo do rap. Nesta ótica, decidiu adotar como nome artístico a grafia “Nizaj”, que corresponde à pronuncia brasileira do seu nome. Sempre com uma voz profunda, de levada impecável, os últimos lançamentos dele (todos disponíveis no canal Youtube do selo Black Owl Records) dão uma ideia da sua versatilidade: em “Mentiras”, o cantor continua explorando a veia acústica que fez o sucesso da Banda “Crônicos”; a canção “Vem comigo” traz uma onda repleta de sensualidade, enquanto a sua participação em “Crônicas” – ao lado dos comparsas mareenses  da Black Owl – vem se apoiando em sonoridades mais obscuras.

“Toquei na Maré inteira. Tocar aqui é como fazer um show em casa!”, se orgulha o jovem cantor. Mas apesar da ótima recepção da qual se beneficia hoje em dia, a vida desse filho de imigrantes angolanos nem sempre foi cor de rosa. Em particular, ele lembra ter sofrido bullying na infância, por causa da sua origem africana. No entanto, a criação oferece vias potentes de superação: “Hoje, pego tudo isso de ruim que aconteceu comigo e utilizo de forma benéfica. Eu acho que essa é a questão da arte.”

Nzaje e seu irmão caçula Elmer, que já participaram também de vários grupos teatrais, foram contratados pela Cia Marginal para encarnar moradores oriundos de Angola na peça “Hoje não saio daqui”. “É um projeto muito bom, que leva as questões africanas dentro da Maré, já que é uma favela que tem uma grande quantidade de pessoas de lá”, descreve Nzaje. Representar os seus conterrâneos dentro de uma ambiciosa produção teatral é um desafio que o artista aceitou com forte consciência política, como ele afirmou: “A minha arte é militante. Eu tenho algo a zelar. Tenho o meu espaço de fala como negro, como favelado e como estrangeiro.”

*Nicolas é francês, mora atualmente na Vila dos Pinheiros e cursa doutorado na UFRJ, onde estuda a presença de imigrantes estrangeiros nas favelas do Rio de Janeiro.

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