O enfrentamento da pandemia na Maré

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O conjunto de favelas tem gratuitamente telemedicina, testes PCR´s e sorológicos, além de acompanhamento social para o isolamento seguro.

Por Daniele Moura com conteúdo do projeto Conexão Saúde em 11/03/2021 às 6h. Editado por Edu Carvalho

Ninguém imaginava que um ano após a Organização Mundial da Saúde anunciar a pandemia do novo coronavírus, o Brasil viveria o pior momento desde que a covid chegou no país. Com recordes diários tanto do números de mortes como da média móvel dos óbitos, o panorama brasileiro tende a ficar pior. Especialistas da Fiocruz preveem que até o fim de março teremos três mil mortes diárias. Isso representa mais de 7 aviões 747-300 caindo por dia. Mas não há comoção parecida com desastres aéreos. A paralisia que acomete o Brasil parece ser mais danosa que o próprio vírus. 

Com a falta de uma política de saúde pública global que direcione os brasileiros na prevenção e diminuição do contágio, o país parece não viver a pandemia. Não há vacinas suficientes, não há leitos, nem tão pouco equipamentos de proteção gratuitos à população, sobretudo os mais pobres. Isso sem falar nas medidas possíveis de assistência social para os mais impactados como o auxílio emergencial. E os números não param de crescer. 

O Brasil permanece, desde o final de maio de 2020, como o terceiro país com maior ocorrência de casos e na segunda posição em número de mortes, totalizando 11.483.370 casos confirmados e 270.917 óbitos até o dia 14/03/2021, segundo o Consórcio de Imprensa. Na cidade do Rio de Janeiro, segundo o Painel Rio COVID-19, administrado pela Prefeitura, foram contabilizados 213.488 casos confirmados e 19.380 mortes até a mesma data. Destes, 1.627 casos confirmados e 170 óbitos foram de moradores da Maré. Só nos últimos 14 dias – de 23/02 a 08/03 – foram 54 novos casos e 3 mortes nas 16 favelas do território. Já pelo Painel Unificador das Favelas, monitoramento onde se contabiliza casos suspeitos e confirmados por líderes comunitários de 70 favelas da cidade, a Maré já soma 3.155 casos. Ainda pelo Painel são 32.597 casos nas favelas da cidade.

Para enfrentar o problema, a Redes da Maré desde abril de 2020 está atuando com a Campanha Maré Diz Não ao Coronavírus, que inicialmente doou itens alimentícios e kit de higiene e desde julho, se desdobrou no projeto Conexão Saúde numa parceria da organização com Dados do Bem, SAS Brasil, Fiocruz, União Rio e Centro Comunitário de Manguinhos, com financiamento do Todos pela Saúde. A iniciativa oferece telemedicina, testagem gratuita e o acompanhamento para o isolamento seguro. O Centro de Testagem de Manguinhos inaugurou em 09/12/2020, quatro meses após o centro da Maré e contou, até 12/03/21 com 1.589 amostras de testes coletados, sendo 236 positivos.

Já o Centro de Testagem da Maré – situado na Nova Holanda, na Rua Teixeira Ribeiro – já testou até o dia 8 de março, 10.678 pessoas, sendo que 1.763 estavam positivas para o novo coronavírus.  Todos os casos positivos testados pelo projeto são notificados ao Poder Público e, portanto, passam a compor os dados oficiais do Painel Rio COVID-19. No entanto, ao monitorar os números de ambas as fontes, é possível perceber um atraso, por parte do município, de pelo menos duas semanas em relação à divulgação dos casos positivos reportados pelo Conexão Saúde às autoridades.

O projeto também oferece telemedicina tanto para casos de covid quanto outras especialidades, respondendo às demandas reprimidas em função da diminuição do atendimento nas unidades de saúde e oferecendo alternativas aos moradores para que sejam atendidos sem precisar sair de casa, evitando aglomerações. No caso de pacientes teste de covid-19 positivo é possível realizar o acompanhamento dos casos e encaminhamento para rede pública de atendimento, quando necessário. Desde julho do ano passado foram feitos 2.449 atendimentos médicos por telemedicina pelo Conexão Saúde, sendo 706 casos com suspeita ou confirmação de covid-19. E em 8 de março foram 16 casos ativos. Já o Programa de Isolamento Social oferece acompanhamento social às famílias, orientação para o cuidado e fornecimento de insumos como kits limpeza e higiene e alimentação no período da recuperação da doença. Ao todo até o dia 08/03, 404 moradores foram incluídos no programa, 32 casos estão em acompanhamento e cerca de 4 mil kits de refeições foram entregues.

Desde que começamos a Campanha Maré Diz Não ao Coronavírus começamos ouvir os moradores e suas famílias sobre as questões que envolvem a covid. Como não havia testagem, e poucas informações sobre a doença, e muitas demandas sociais para cumprir, priorizamos essa escuta e a partir dela iniciamos o Conexão Saúde.” 

Henrique Gomes, coordenador do programa de Isolamento Domiciliar Seguro do Conexão Saúde, o diferencial do projeto foi ter tido como base as demandas dos moradores da Maré.

Revolta da Vacina 

Vivemos um momento muito preocupante com o cenário atual de politização da vacina contra a covid-19, promovendo visões negacionistas e anticiência sobre a pandemia. Mas se olharmos para trás veremos que há 116 anos vivíamos um cenário também de revolta à vacinação.

Em 1904, a então capital do país, passou por reformas urbanas que visavam remodelar a cidade, tornando-a reflexo do Brasil republicano moderno que acabara de se constituir. O País enfrentava três grandes epidemias na época: a peste bubônica, a febre amarela e a varíola e programas obrigatórios de higienização utilizaram recursos arbitrários para lidar com a população – incluindo remoções forçadas e as chamadas guardas “matamosquitos”, que invadiam casas, muitas vezes acompanhadas por soldados da polícia. Especificamente em relação à varíola, foi criada uma lei que instituiu a vacinação obrigatória em massa da população.

Já as reformas urbanas,capitaneadas pelo prefeito Pereira Passos, nomeado pelo então presidente Rodrigues Alves, visavam a reorganização do centro da cidade. Este processo envolveu a demolição de cortiços de forma autoritária e sem indenização aos moradores, o chamado “Bota Abaixo”. Removida das áreas centrais da cidade, uma significativa parcela da população – marcadamente pobre e negra – foi obrigada a buscar moradias em morros e regiões periféricas da cidade. Assim surgiram e cresceram as primeiras favelas do Rio de Janeiro.

Neste processo de remoções forçadas e medidas de higienização e imunização violentas, que não priorizaram a disseminação de informação para a população, tensões urbanas foram se intensificando. Em novembro de 1904, motins populares se espalharam pela cidade, sendo duramente reprimidos pelas forças de segurança. Foi a chamada Revolta da Vacina. É importante lembrar que a crescente insatisfação da população foi aproveitada por grupos políticos contrários ao presidente eleito Rodrigues Alves com o objetivo de enfraquecer o governo. Junto à parcela da mídia – especialmente por meio de charges e folhetins, muito comuns à época – tais grupos exploraram o medo de se vacinar, estimulando a circulação de notícias que colocavam em dúvida o efeito da vacina e o mal que podia causar à saúde. Durante muito tempo, dizia-se que, ao tomá-la, era possível adquirir “feições bovinas”, por conta dos animais que deram origem à substância imunizante.

Após alguns dias de motins e confrontos pela cidade, a obrigatoriedade da vacinação foi retirada, deixando um saldo de 30 mortos, 110 feridos e 945 presos. A repressão foi direcionada aos grupos mais pobres e à população negra, representada, inclusive, no único registro fotográfico que se tem dos manifestantes detidos. Mais tarde, em 1908, após um surto de varíola no Rio de Janeiro, a vacinação contra a doença foi amplamente realizada com aceitação da população, num episódio, portanto, diferente da Revolta da Vacina. 

Programa Nacional de Imunização

Nas décadas que seguiram, o país passou por outros períodos importantes de imunização da população, como a vacinação contra a tuberculose (BCG), em 1927, a eliminação da febre amarela urbana em 1942, a criação da campanha de erradicação da varíola em 1966 e, finalmente, a criação, em 1973, do Programa Nacional de Imunizações (PNI) pelo Sistema Único de Saúde. Desde então, o PNI vem se configurando como uma das principais estratégias de política pública em saúde do país, com impacto direto na relação entre o número de mortes provocadas por doenças. 

No entanto, a partir de 2016 pesquisadores passaram a chamar atenção para a diminuição das metas estabelecidas para os Índices de Coberturas Vacinais (ICV). Este fenômeno, que não é exclusivo do Brasil, é apontado como reflexo de muitos fatores: falta de informação sobre os benefícios das vacinas, notícias falsas que circulam especialmente nas redes sociais, a precarização das Unidades Básicas de Saúde (UBS), dificultando o acesso à atenção primária, e a falta de produtos específicos para a efetivação de alguns planos de vacinação. O ano de 2020, ano da pandemia da covid-19, foi também marcado por um surto do vírus do sarampo, que estava erradicado no país, com certificado concedido pela Organização Pan Americana de Saúde (OPAS/OMS), desde 2016. Foram registrados 8.261 casos da doença em todo território nacional e o vírus permanece ativo em estados como Amapá, São Paulo, Pará e Rio de Janeiro. A partir de 2016 observou-se ainda a queda do ICV para vacinas do calendário nacional, com metas abaixo do esperado para maioria das vacinas infantis – com exceção da vacina BCG. 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) vem, desde 2012, buscando entender este contexto e, em 2019, considerou como uma das dez maiores ameaças globais à saúde, a “hesitação em se vacinar”. No Brasil, este cenário é agravado pela intensa precarização do Sistema Único de Saúde, o SUS, e das condições de trabalho dos profissionais de saúde que atuam no sistema. E é neste contexto que a vacina contra a covid-19 chega ao país, em 17/02/2021, ficando ainda mais evidente a importância do fortalecimento de estratégias como o PNI, que vão atuar de forma direta, em todas as etapas do processo de imunização contra a doença. 

Em meio à precarização destas estratégias de saúde, as desigualdades sociais – que também se refletem nos cuidados básicos e no acesso à saúde primária – representam grande desafio para o enfrentamento da covid-19. Especialmente em territórios periféricos e favelados, estes desafios são relativos à precariedade das infraestruturas de moradias e composição familiar (com alta densidade habitacional), à inviabilidade do distanciamento social (grande parte dos moradores são trabalhadores informais, sem vínculo empregatício e dependem do trabalho presencial para subsistência), ao déficit de infraestruturas urbanas e falta de acesso ao saneamento básico e, muitas vezes, à água.

Apesar das favelas serem atingidas de maneira desproporcional pela epidemia do novo coronavírus, nenhum plano específico de enfrentamento foi criado. Outros grupos vulneráveis foram, com razão, reconhecidos como grupos de risco a serem priorizados. Foram cobertas vulnerabilidades físicas, mas também étnico-sociais, como é o caso da população indígena, ribeirinha e quilombola. Mas as populações urbanas periféricas e faveladas não foram incluídas. Ao contrário, conforme a vacinação avança no Rio de Janeiro, é possível identificar que esta parcela da população não só não foi priorizada, como tem sido negligenciada com uma cobertura insuficiente em relação aos bairros mais ricos da cidade. Só para exemplificar, na zona sul da cidade, foram dadas 71.413 doses da vacina até 09/03, enquanto na Maré foram 3.115 o que demonstra que nesses territórios a vacinação anda bem mais lenta do que os mais ricos da cidade. Por que isso acontece?

Dados do último boletim Conexão Saúde: De olho no Corona

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