O nosso dia irá chegar

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Por Fillipe dos Anjos em 04/11/2020, às 14h

SOBRE O AUTOR: Fillipe dos Anjos é formado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), foi Conselheiro Estadual de Saúde e atualmente exerce o cargo de Secretário Geral das Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro – FAFERJ

Falar de favela é sempre complicado… Principalmente no dia de hoje, 04 de novembro, dia estadual da favela. Envolve um turbilhão de sentimentos e emoções que desafiam a razão que qualquer texto escrito possa ter. Há quem diga que favela não é lugar de morar; tem gente que só quer andar tranquilamente na favela onde nasceu; e outros falam que você pode sair da favela, mas a favela não sai de você. Todos têm sua razão e isso mostra que nesses territórios a emoção fala mais alto. Mesmo com todas as nossas contradições uma coisa é unanimidade: a Favela é território da resistência. 

Historicamente, as favelas nascem no final do século XIX quando os negros e negras escravizadas conquistam sua liberdade após séculos de luta. Nesse contexto, o Estado brasileiro, que deveria adotar uma política de inclusão dessa população, recém-liberta e sem moradia, adota uma política genocida chamada eugenia, que em uma de suas faces, consiste em abandonar os negros à própria sorte ao passo que estimula a chegada de imigrantes europeus ao Brasil. O objetivo dessa barbárie era o “branqueamento” da população brasileira e a extinção da raça negra do Brasil, vista naquele momento como inferior intelectualmente.

Da noite para o dia, os negros e negras que haviam conquistado sua liberdade a custa de muito sangue, se viram abandonados sem nenhuma política pública de emprego, educação ou moradia digna. A saída encontrada por esses homens e mulheres foi ocupar as encostas dos morros onde ninguém imaginaria que pessoas poderiam morar. Nasce a favela sob o signo da resistência, da coragem e da luta pelo direito fundamental à vida.

Ao longo da nossa história, a necessidade de lutar por direitos fez a favela se organizar em diversos movimentos. Entre esses movimentos, a Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro, FAFERJ, surge em 1963 como forma de luta por direitos a essa população e mais adiante como resistência à ditadura militar, implantada no Brasil após um golpe civil militar em 1964. O regime militar representou um período de terror paras comunidades, onde toda espécie de violação aos direitos humanos era permitida. Os incêndios criminosos, remoções violentas e atuação de esquadrões da morte marcaram esse período de terrível. Também houve resistência à ditadura nas favelas, embora as execuções e violência tenham abafado essa história de luta. Nesse período, a FAFERJ caiu na clandestinidade e teve seus diretores perseguidos pela ditadura militar. Vale a pena ressaltar que a atuação das milícias de hoje está diretamente ligada à atuação desses esquadrões da morte durante o regime militar. 

É curioso perceber como muitas favelas se formaram em decorrência a remoções e incêndios criminosos em outras favelas. A exemplo disso, temos a formação da Nova Holanda em 1962, uma das 16 favelas que compõem a Maré, a partir da demolição da favela do Esqueleto, no Maracanã, onde hoje é a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e da remoção de pessoas de favelas como Morro da Formiga e Morro do Querosene. Outro caso foram os incêndios nas favelas da Catacumba (1967) e Praia do Pinto (1969), Lagoa e Leblon, bairros que hoje estão entre os três metros quadrados mais caros da cidade e que já passavam por processo de especulação imobiliária. Na época, os moradores da Catacumba foram removidos para a Barra da Tijuca, formando a Cidade de Deus, e os moradores da Praia do Pinto foram para Cordovil, onde hoje fica a Cidade Alta.

Justamente no período dos incêndios, especificamente de 1968 a 1973, foi realizado o maior programa de remoções de favelas da cidade, por meio da Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana (CHISAM), autarquia do governo federal em parceria com o Governo da Guanabara. Mais de 175 mil moradores de 62 favelas foram removidos – de forma provisória ou definitiva – para 35.517 conjuntos habitacionais ou Centros de Habitações Provisórios (CHP), localizados em maioria nas zonas Norte e Oeste. Antes de se tornar moradia fixa, a Nova Holanda era um CHP.

O movimento de favelas pós-ditadura

A redemocratização do Brasil em 1985 trouxe um sopro de esperança para o povo brasileiro e, consequentemente, para os movimentos de favela, que puderam voltar as suas atividades agora em uma nova democracia. A Constituição Cidadã de 1988 em seu Capítulo II falava dos direitos à moradia digna, educação, saúde, emprego. É nesse período anterior à escrita da constituição que a FAFERJ ressurge junto ao movimento estudantil, movimentos de mulheres, movimento sindical, movimento negro… A principal luta dos movimentos de favela era garantir à risca a nova constituição federal e fazer valer os direitos sociais que foram conquistados na luta por democracia. 

Da redemocratização até os momentos atuais podemos perceber que a desigualdade social e democracia são como água e óleo: não se misturam. Defenderemos sempre a democracia como valor fundamental, mas na favela existe a democracia real? A mesma democracia que vigora no asfalto vigora na favela? A resposta é não, pois a desigualdade social ainda é a pedra fundamental da sociedade brasileira. Enquanto houver desigualdade, nunca haverá democracia.

As elites nacionais lucram com a miséria do nosso povo e a escalada de violência gera um capital político enorme para essas novas forças de extrema direita que surgiram das urnas nas últimas eleições. Essa nova extrema direita usa um discurso religioso radical e coloca a favela como lugar de violência e pobreza. Vale ressaltar que as favelas não declararam guerra a ninguém. Não existe uma guerra, esse discurso é muito equivocado. Nossos territórios são ocupados por gente trabalhadora e de bem que sustenta esse país pagando uma das maiores cargas tributárias do mundo. As favelas geram milhares de emprego e representam a força de trabalho que move a cidade e o país. As favelas são pólos de arte e cultura e esporte abandonados pelo Estado. 

Abandono que sentimos na pele com a chegada do novo coronavírus ao Brasil. Vale deixar registrado que durante essa pandemia mortal houve diversas operações policias causando morte nas comunidades. Isso representa o terrorismo de Estado ao qual somos submetidos. Não tivemos acesso a testes e a tratamento de saúde adequado contra o novo coronavírus. 

Essa pandemia também revelou heróis e heroínas do povo brasileiro. Milhares de lideranças comunitárias abandonaram seus lares e suas famílias para lutar contra a pandemia distribuindo de cestas básicas, kits de higiene formando redes de solidariedade. Centenas de lideranças comunitárias perderam as vidas em todo Brasil. A esses homens, mulheres e seus familiares seremos eternamente gratos e prestamos nossas sinceras homenagens. 

Esperamos que um dia essas autoridades que nos abandonaram e que agiram deliberadamente nos desvios de dinheiro da saúde possam ser julgadas e condenadas por seus crimes contra o povo brasileiro e a humanidade. 

O bagulho é doido né? Eu não falei que a história da favela é de resistência? Mas essa história não acabou ainda. Nesse dia 04 de novembro, dia estadual da favela, a FAFERJ segue na luta, eu sigo na luta e sei que você também segue. Somos a maioria da população. Individualmente fazemos nossa parte, mas juntos faremos a diferença. Eu sou porque nós somos. Marielle presente!

Você sabia?

Há pelo menos 10 anos comemora-se no dia 04 de novembro o Dia da Favela, como forma de relembrar o histórico de luta, resistência e sociabilidade das favelas, mas apenas em 2019 que a data passou a fazer parte do calendário estadual, graças à Lei Ordinária N° 8489/2019.

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