O outro lado da história

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Pesquisadora mostra que a partir dos anos 1990 o jornalismo reduziu a narrativa sobre a favela aos casos de polícia

Por Carla Baiense*

Há mais de 15 anos, pesquiso a forma como as favelas são representadas nos veículos impressos do jornalismo comercial do Rio de Janeiro. Enquanto jornalista e pesquisadora, queria entender os impactos desta maneira particular de apresentar estes territórios sobre o cotidiano de seus moradores. Enquanto moradora, eu já conhecia, em parte, essa resposta. Explico: antes de se tornar o tema da minha pesquisa, a favela foi minha casa. No Parque União, onde nasci e cresci, observava que os jornalistas só entravam para registrar a morte de “mais um bandido”. Acho mesmo que meu incômodo com essa redução da favela a uma questão de polícia me empurrou para o jornalismo, onde esperava poder contar o outro lado dessa história. 

Mas entre a percepção do problema e o diagnóstico de suas causas existe a investigação. Assim, reuni e organizei por temas uma amostra com quase 800 reportagens publicadas em dois jornais cariocas, O Globo e Jornal do Brasil, entre os anos de 1984 e 2010. O que descobri? Uma associação entre favela e violência tão recorrente que o foco da minha observação se deslocou: já não pesquisava a favela na imprensa, mas a criminalidade urbana nas páginas de jornal. A partir dos anos de 1990, mais de 80% de todos os textos da minha amostra que traziam a palavra favela se referiam a eventos ligados à violência.

Neste conjunto de reportagens, um episódio em especial me chamou atenção: a cobertura de um confronto na Favela do Coroado, em Acari, na Zona Norte do Rio, em 28 de setembro de 1993. A matéria principal recebeu no jornal O Globo o título de “A batalha de Acari”. Ali surgiam os primeiros elementos de uma forma particular de narrar eventos nas favelas. Foi nesta reportagem, ilustrada por fotos dramáticas de pessoas fugindo em meio à fumaça, incluindo uma mãe com o filho nos braços, que encontrei pela primeira vez a palavra que viria a ser muitas vezes usada em coberturas deste tipo: guerra. 

Na década seguinte, a “Guerra do Rio” se tornou não apenas uma expressão, mas uma marca visual usada sempre que se noticiava um confronto em favelas cariocas. Cabe perguntar, sem dúvida, o que significa naturalizar a ideia de que há uma guerra no Rio, colocando em campos opostos a favela e a “cidade”. Para quem mora na favela, os efeitos estão por todos os lados. A violação de direitos pelo Estado que deveria protegê-lo e o descaso com suas reivindicações são vistos como efeitos colaterais desta guerra. 

Em mais de 30 anos de cobertura policial, os jornais repetem a fórmula que associa a violência à favela, reduzindo a vida nestes territórios a uma representação estereotipada, que não contempla a diversidade de experiências e a potência de seus moradores. Vale lembrar que um estereótipo não é apenas uma visão distorcida de pessoas ou grupos. Ele é também uma visão engessada. Ao repetir o discurso de que a favela é fonte de violência, a imprensa fixa os sentidos ligados a ela, legitimando violações aos direitos fundamentais dos cidadãos e cidadãs que habitam esses territórios. Expressões como “bunker de bandidos”, que ainda hoje são utilizadas no noticiário, expressam essa naturalização de que estamos falando.

Várias pesquisas no campo da comunicação mostram que o jornalismo é bastante eficiente em influenciar o debate político. Ao incentivar uma cultura do medo à favela e defini-la como fonte de violência, ele contribui para uma agenda política que enxerga esses territórios como um problema a ser, no mínimo, contido, e preferencialmente, eliminado. 

É certo que a imprensa não criou todos os problemas que os moradores de favela enfrentam, mas ela precisa fazer parte da solução. Enquanto o jornalismo continuar a reduzir a favela a uma questão de polícia, as políticas públicas voltadas a ela continuarão a se concentrar em “soluções” pautadas pela repressão e pela força – legitimada pela opinião pública e pela liberdade de expressão. 

*Carla Baiense Felix é jornalista, professora e doutora em Comunicação e Cultura nascida e criada na Maré.

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