O ponto a que chegamos

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(Artigo originalmente publicado no jornal O Globo do dia 09 de fevereiro de 2018)

Por Eliana Sousa Silva

Confrontos armados com alta taxa de letalidade tornaram-se corriqueiros no Estado do Rio. A escalada da violência tem gerado perplexidade e revolta. Somos tomados por um sentimento de incapacidade coletiva ao não enxergarmos perspectivas de reversão, em curto prazo, do ponto nevrálgico onde estamos.

Como em outros momentos, cabem algumas indagações: quais as origens e os pressupostos que sustentam, historicamente, o padrão de confrontos entre agentes da segurança pública e integrantes de grupos armados em favelas e periferias no Rio? Por que um segmento significativo da sociedade acredita e referenda uma forma de atuação do governo, a partir da atuação das polícias, que desconsidera os direitos de quem mora em favelas e periferias? O que fazer para que se estabeleçam protocolos de respeito e princípios, num estado de direito democrático, para o conjunto da população?

São muitas as questões que podemos relacionar ao olharmos a perda de sensibilidade e o distanciamento que nos acomete sobre o valor da vida no Brasil. Somos um país que registra mais de 61 mil homicídios ao ano, sendo 6,2 mil desses no Rio de Janeiro — imensa maioria em decorrência de disparos de armas de fogo. De maneira recorrente, estes assassinatos seguem um padrão étnico-racial, etário e de estrato social: a maioria dos assassinados é jovem, negra moradora de favelas e de periferias. Talvez isso nos diga muito sobre as razões pelas quais ainda não nos mobilizamos, de verdade, como sociedade, para exigir que o estado bélico em que vivemos não nos represente (ou deveria representar?).

Ao olharmos uma porção específica na cidade do Rio — as 16 favelas da Maré —, nos deparamos com um quadro que ilustra bem o estado crítico de violência. Os dados de 2017 sobre confrontos armados na região sistematizados no Boletim pelo Direito à Segurança Pública na Maré, elaborado pela Redes da Maré, são os seguintes: ano passado houve 42 homicídios e 57 feridos. Os conflitos fizeram com que escolas fechassem 35 dias; os postos de saúde deixaram de funcionar 45. Diante deste apanhado, é impossível deixar de perceber que os moradores de favelas e periferias têm sido expostos a um nível de sofrimento e desrespeito que precisa ter fim.

Se fizéssemos a cartografia dos homicídios no Rio, iríamos identificar que os quase 6,2 mil homicídios ao ano acontecem nas áreas consideradas periféricas. É nessas circunstâncias que identificamos, infelizmente, que a política de segurança pública no estado é pautada pela ideia de que vivemos uma guerra e, portanto, há um exército inimigo: os moradores de favelas e periferias. É inegável que os agentes da segurança pública não fazem distinção entre a população que reside nessas áreas e pessoas que estão em atividades ilícitas, atuando, em algumas situações, em grupos armados.

O Estado justifica a alta taxa de violência bélica e as violações que atingem os moradores de favelas e periferias pela necessidade de repressão a grupos armados que controlam pontos de drogas no varejo. O que vemos, com isso, é a demanda cada vez maior de armamentos pesados com alto grau de letalidade, tanto pelas forças de segurança quanto por estes grupos. Cada vez mais, reforça-se o predomínio de um pensamento imposto pela lógica da famigerada “guerra às drogas”. Ora, não passamos da hora de olhar para o juízo que temos sobre a questão das drogas? Não urge, neste momento, refletirmos sobre os efeitos nocivos decorrentes da falta de priorização dessa agenda, no tocante à descriminalização e à legalização das drogas? Como nos libertarmos dos nossos preconceitos em relação a esse ponto, que nos divide como sociedade?

Se começássemos a nos abrir para a reflexão, talvez pudéssemos olhar para outra constatação: o grau de letalidade que as armas provocam. Esse é um tráfico que movimenta muito dinheiro e cujo ponto de venda não se encontra nas periferias. Na realidade, é para lá que são levadas. Por que não temos inteligência para desmontar essa rede? Não passou da hora de a Polícia Federal, a Rodoviária e a Guarda Costeira se articularem para agir em conjunto e reduzir a entrada de armas no Estado do Rio?

Sem olhar algumas das questões aqui expostas, dificilmente poderemos mudar a rotina que vem sendo implementada, no Rio de Janeiro, pelos agentes da segurança pública, de somente atuar nas favelas e periferias por meio de idas esporádicas nas chamadas operações policiais. Essas incursões, que mobilizam diferentes estruturas das polícias Militar e Civil, têm significado um alto gasto de munição e resultam, quase sempre, nas mortes de moradores e policiais, num quadro que gera desesperança, medo e falta de respeito à dignidade humana.
A que nível de barbárie precisaremos chegar para que essa violência acabe?

Eliana Sousa Silva é diretora da ONG Redes da Maré

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