Por Alexandre dos Santos, em 16/07/2021
Lendo, vendo e ouvindo o noticiário, parece fácil de entender. O ex-presidente sul-africano, Jacob Zuma, que foi removido no cargo depois de um impeachment em 2019, foi preso porque mostrou profundo desprezo pelo Judiciáriodo próprio país. Fez isso ao faltar ao próprio julgamento, o que – na legislação da África do Sul – é visto como desacato ao juiz que está à frente do processo que julga Zuma pelos crimes de enriquecimento ilícito, corrupção e favorecimento a uma empresa fabricante de armas, que assinou contratos bilionários com o governo sul-africano.
Jacob Zuma se recusou várias vezes a comparecer ao próprio julgamento na Comissão Anti-Corrupção do Tribunal Constitucional (o STF da África do Sul). Então, a juíza Sisi Khampepe, entendeu que ele está fazendo de tudo para atrapalhar as investigações e condenou o ex-presidente a 15 meses de prisão.
Para as instituições sul-africanas é importante que Zuma seja posto no seu devido lugar e que sirva de exemplo, afinal ele está tentando desacreditar a autoridade do poder Judiciário do país dando um péssimo exemplo: a de que um investigado pode desrespeitar os juízes da mais alta instância do poder Judiciário na África do Sul. Pior, a audiência foi televisionada e todo o país foi testemunha do pouco caso e do desrespeito.
Assim que foi ordenada a prisão, Zuma se escondeu da polícia e só se entregou na noite do último dia antes de o prazo expirar. Durante esse tempo, incitou seus correligionários e seus seguidores mais fiéis, aqueles que o elegeram presidente e que acreditam que o processo de impeachment foi uma fraude. Sim, existe uma parcela da população que acredita em tudo o que ele diz e isso não é surpresa para nenhum brasileiro. Nós entendemos muito bem essa situação.
Assim que Zuma foi preso, uma série de protestos tomaram as ruas da província de KwaZulu Natal, a região onde vive a maioria dos zulus, grupo étnico do ex-presidente. Os manifestantes foram para as ruas para criticar a prisão de um homem que eles veem como um herói da luta contra o regime que segregou a maioria negra da população em favor da minoria branca: o apartheid, que vigorou na África do Sul de 1948 até 1992.
Para os zulus, estão prendendo um herói, mesmo que esse herói tenha saqueado o próprio país enquanto esteve na presidência entre 2009 e 2019. E mais: liderou uma ação para desmantelar muitas instituições que poderiam responsabilizá-lo, como as equipes de investigação da Polícia Federal e o departamento de cruzamento de dados financeiros do Ministério da Fazenda sul-africano, que trabalhava da mesma forma que o nosso Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras). Nós brasileiros entendemos muito bem como isso funciona também.
Em pouco tempo, as manifestações tomaram outras províncias como Gauteng, por exemplo, no nordeste do país, onde ficam a capital, Pretória, e Joanesburgo, a principal cidade do país. E começaram os saques. Quando a população vai às ruas, aí juntam-se muitos ressentimentos: a falta de investimentos do governo em debelar a pobreza extrema (na casa dos 20%), a falta de empregos (que atinge estonteantes 32% da população), a violência policial excessiva contra os cidadãos que ousaram desafiar o toque de recolher em muitas cidades por causa da pandemia do coronavírus, a falta de vacinas (pouco mais de 6% da população foi vacinada) etc.
As imagens dos saques a shopping e dos furtos de eletrodomésticos ou televisores são as que mais vemos. Porém há também muitos saques a supermercados. Pessoas roubando comida.
Nessa espiral, é difícil justificar tanto os saques quanto as reações violentas das autoridades policiais (a África do Sul tem um ministério da Policia). O início dos protestos começou com Zuma incitando a claque que o defende com unhas e dentes. Agora a situação saiu do controle. Além dos shoppings, mercados e empresas, que continuam fechadas e com homens armados privados fazendo a segurança, Hospitais e postos de saúde onde as vacinas contra o coronavírus estão sendo aplicadas também estão fechados. Os transportes públicos estão suspensos e muita gente não consegue se deslocar até o trabalho. Pior do que isso, algumas milícias armadas estão aproveitando o caos instalado em algumas cidades para intimidar as pessoas nas ruas, principalmente pessoas negras. Em algumas imagens, saqueadores aparecem sendo açoitados com um instrumento próprio dos tempos do apartheid: o Sjambok, um chicote duro com pelos de hipopótamo ou de rinoceronte na ponta.
Até quarta-feira (14), cerca de 72 pessoas haviam morrido em confrontos e mais de mil e duzentas foram presas. O atual presidente, Cyrill Ramaphosa foi à TV pedir calma e anunciar o envio de 76 mil homens do exército para conter a violência nas ruas de Gauteng e KwaZulu-Natal.
A instabilidade social na África do Sul também é ameaça às populações de outros países que vivem na país, principalmente zimbuanos, moçambicanos e nigerianos, alvos de ataques xenófobos há alguns anos.
Essa é a primeira na história da África do Sul que um ex-presidente é condenado à prisão. Serão, a princípio, 15 meses de reclusão. Mas a África do Sul não pode passar esse tempo todo sem controle.
Alexandre dos Santos é jornalista e professor de História do Continente Africano no Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio.