Testemunha é ouvida pela primeira vez sobre morte do seu irmão ocorrida na Avenida Brasil, durante uma manifestação em fevereiro
Maria Teresa
Uma das três testemunhas de acusação pela morte de Jefferson de Araújo Costa, 22 anos, baleado pelo cabo da PM Carlos Eduardo Gomes dos Reis, foi ouvida pela primeira vez nesta segunda-feira (24). Jefferson foi morto no dia 8 de fevereiro deste ano, durante uma manifestação contra violência policial na Avenida Brasil, no acesso a Nova Holanda. A testemunha ouvida é uma das irmãs e estava ao lado da vítima no dia da morte. Ao Maré de Notícias, ela afirma que agiu com normalidade. “É uma coisa que tem que ser feita. Falei o que tinha que ser falado, porque eu tava ali do lado, eu vi tudo acontecer”.
O Ministério Público do Rio de Janeiro pediu uma nova audiência para ouvir as outras duas testemunhas de acusação. A defesa tem cinco testemunhas, todos policiais militares. Nesta fase do processo, as testemunhas dos dois lados serão ouvidas e a juíza Tula Corrêa de Melo tomará a decisão pela pronúncia ou não. Ou seja, se o caso segue no Tribunal do Júri ou se irá para a Justiça Militar. Em linhas gerais, a Justiça terá que decidir se o homicídio é culposo, quando não há intenção de matar, ou doloso, quando há intencionalidade na ação e, portanto, caberá o julgamento na justiça comum. A juí,za original do caso está em férias e, na audiência desta segunda-feira, foi substituída por Alessandra da Rocha Lima Roidis.
A irmã de Jefferson afirma que a morte dele provocou uma dor inclassificável na família e é por isso que decidiu lutar por Justiça. “A minha família do jeito que está depois da perda… Ele morava com minha vó, que morreu a poucos dias. Não se aguentava de tristeza”, conta. “Éramos próximos, às vezes ele me ajudava no trabalho, todo dia tomava café comigo. [Jefferson era] Muito brincalhão, tudo ele ria, um pouco envergonhado. Quando tinha que pedir alguma coisa, colocava a mão na cabeça assim”, disse, lembrando do trejeito do irmão.
A Redes da Maré, através do projeto Maré de Direitos, do Eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça, atuou desde o instante em que Jefferson foi atingido, tanto no apoio psicológico e assistencial aos familiares, como no processo judicial. Um dossiê sobre o caso foi produzido pela equipe trazendo um extenso compilado de registros fotográficos do local do crime, testemunhos, vídeos, para evidenciar que Jefferson foi morto à queima-roupa e desarmado. Uma das versões do agente de segurança pública que atirou no rapaz é que Jefferson estaria com uma pedra nas mãos e ele foi usar o fuzil para tirar o objeto das mãos da vítima. A pedra nunca foi encontrada e registros de diversos ângulos mostram que o rapaz estava com as mãos vazias.
Para a advogada da Redes da Maré, Marcela Cardoso, que trabalhou desde o instante em que Jefferson foi baleado, o trabalho realizado pela equipe do Eixo foi fundamental para a mudança de entendimento do caso. Isso porque, em um primeiro momento, a Delegacia de Homicídios, sem nem ouvir familiares e outras testemunhas, tratou o caso como homicídio culposo.
“O trabalho realizado pela Redes da Maré durante o plantão de operação, foi extremamente importante para chegarmos a essa primeira fase do Júri. O Jefferson foi baleado em uma das entradas da Maré e, na sequência, fomos chamados para prestar auxílio. Algumas pessoas da nossa equipe estavam no local, porque não conseguiam entrar na Nova Holanda, por causa de um intenso tiroteio que acontecia naquele momento. Então todos nós chegamos muito rápido ao local e conseguimos buscar elementos, tirar fotos do local, das perfurações, compilamos diversos vídeos que foram enviados pelos moradores e outras testemunhas que ali estavam e produzimos esse dossiê, enviado ao Ministério Público para que servisse efetivamente um manancial comprobatório do que havia acontecido ali”, explicou.
A articulação desse trabalho foi feita com a Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ e o Ministério Público, que provocou a Justiça a esse respeito, fazendo com que o inquérito retornasse à fase inicial na Delegacia de Homicídios e passasse então a ser tratado como homicídio qualificado.
A testemunha ouvida na audiência desta segunda-feira conseguiu trazer detalhes do ocorrido, já que ela presenciou a dinâmica da ação policial e Jefferson chegou a cair em seus braços após ser atingido.
A advogada Marcela Cardoso lamenta a tentativa de criminalização da favela, evidenciada nesta primeira audiência. “Foi perguntado sobre a vida do Jefferson, se ele tinha passagens. Isso é uma evidente tentativa de criminalização, tanto da conduta do Jefferson, quanto da conduta do ato de se manifestar das pessoas que estava ali, dos jovens, mulheres mareenses, que foram se manifestar por causa de uma operação policial que deixou as crianças presas dentro das escolas e as mães desesperadas do lado de fora”, pontua.
Relembre o caso
No dia 8 de fevereiro deste ano, Jefferson de Araújo Costa, 22 anos, participava de uma manifestação na Avenida Brasil, perto do acesso a Nova Holanda, contra a violência de operações policiais na região. No dia anterior, 7 de fevereiro, durante uma operação policial, Jefferson foi ameaçado de morte por policiais militares. Naquele mesmo dia, a operação havia começado por volta das 9h30, quando a vida na Maré já estava pulsando, comércio aberto e crianças nas escolas. A conclusão foi que as crianças e profissionais da educação ficaram presos dentro da escola em meio ao barulho de tiros e as mães desesperadas dentro de casa, sem poder encontrar seus filhos.
No dia seguinte, parte dos moradores, em especial mulheres mães mareenses, decidiram realizar uma manifestação na Avenida Brasil. Quando o protesto acontecia, uma outra operação teve início no interior da favela, aumentando a tensão dentro e fora do território. Jefferson estava acompanhado de outros jovens no momento em que um policial militar, que não estava atuando diretamente na operação, desembarca de uma viatura, se aproxima e usa o fuzil para bater na vítima. Neste exato momento, Jefferson é atingido na barriga e desfalece na calçada. Posteriormente, o policial alegou que Jefferson estaria com uma pedra nas mãos. Os registros em vídeo e testemunhas mostram que o jovem não estava com nada nas mãos.
A família foi auxiliada pela Redes da Maré que, um dia antes, havia atendido Jefferson por causa da ameaça sofrida. Sem recursos para realizar o sepultamento, no final das contas, a família conseguiu enterrar Jefferson e iniciou, naquele instante, uma luta por reparação.
“O Jefferson não estava fazendo nada que desse causa a ele receber um tiro de fuzil 762 à queima roupa. Toda essa repercussão do caso se dá muito em razão da própria luta da família, dos amigos, dos moradores, que deram visibilidade a essa ação desproporcional e levaram para a mídia a exposição do que acontece em territórios de favela”, critica a advogada.