O racismo disfarçado de intolerância religiosa

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Entre agosto e outubro, 42 denúncias contra casas e praticantes de umbanda e candomblé no Rio

João Ker

Santos, orixás, espíritos, entidades, deuses e ancestrais. Como “Estado laico”, o Brasil, em tese, deveria respeitar a manifestação de todo e qualquer tipo de fé, seja ela praticada em igrejas, mesquitas ou em terreiros. Ainda assim, num País onde 86,8% da população se declaram cristã, de acordo com o IBGE, os casos de intolerância religiosa chegaram a 697 denúncias apenas entre 2011 e 2015. No Rio, esse índice já cresceu 119% no ano passado, com um enorme agravante: a maioria dos casos ocorre contra religiões de matriz africana, provando que mesmo 130 anos após o fim da escravidão, o racismo continua fazendo vítimas pelo País.

“Nos últimos meses, observamos um aumento considerável no número de casos de intolerância religiosa no Estado, principalmente contra seguidores e casas de umbanda e candomblé. Apenas entre agosto e outubro, já foram 42 denúncias, cerca de uma a cada dois dias”, admite Monalyza Alves, assessora técnica da Subsecretaria de Direitos Humanos, Justiça e Cidadania do Rio de Janeiro. Para ela, a mais alarmante semelhança entre esses números são os requintes de crueldade em cada ato, que atinge desde crianças em sala de aula até idosos praticantes.

No total, 91% dos casos de intolerância registrados no Rio são contra religiões como a umbanda e o candomblé, que historicamente já representam uma resistência da população afrodescendente desde que nasceram no Brasil. “Claramente, esse número reflete um racismo que está impregnado na sociedade. E, assim como ele, o preconceito religioso também tem sua origem na colonização do País”, afirma Monalyza.

Apesar das inúmeras vertentes e particularidades, duas religiões de matriz africana são as mais presentes por aqui: o Candomblé e a Umbanda. Trazido ao Brasil pelo intenso fluxo de escravos africanos entre os séculos XVI e XIX, o candomblé desembarcou no País sob o preconceito de “feitiçaria”, uma vez que o Cristianismo vigente na época não tolerava suas divindades (a religião dos povos indígenas passou pelo mesmo processo, vale lembrar). Para que a população afrodescendente pudesse prosseguir com os cultos, os orixás foram se misturando aos santos da Igreja Católica e o sincretismo que surgiu foi sendo praticado em terreiros fechados e escondidos. Mais tarde, durante a década de 1920, a umbanda se desenvolveu no Rio de Janeiro, mesclando uma série de referências como o kardecismo espírita, o cristianismo, a cabula e o próprio candomblé.

Mas se antes a repressão vinha pelas mãos dos senhores da Casa Grande, hoje o preconceito se manifesta até entre os traficantes das periferias cariocas. Em setembro, um vídeo no qual um dos líderes do tráfico de Nova Iguaçu obriga uma Ialorixá (conhecida popularmente como mãe de santo) a destruir seu próprio terreiro viralizou, expondo em nível nacional um problema que não mostra sinais de diminuição. O homem foi preso, mas ainda assim o discurso preconceituoso persiste.

“Nós já levamos a questão às Polícias Militar e Civil para que as medidas cabíveis sejam tomadas. Mas ainda temos um longo caminho para percorrer”, explica Monalyza. Dentre as medidas de prevenção, mapeamento e oposição a esses crimes, ela cita a importância do Disque Combate ao Preconceito (2334 – 9551), que também atende vítimas de LGBTfobia e racismo. Além disso, foi aprovada pelo governador Luiz Fernando Pezão (PMDB) a criação da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (DECRADI), ainda em processo de implantação. “Ela será uma ferramenta importante na luta contra esses casos”, afirma a assessora.

Enquanto a Delegacia não fica pronta, o sentimento geral que invade os praticantes de religiões africanas no Rio é o medo ou a descrença de que este quadro melhore. “Não vejo uma luz no fim do túnel para isso e nem como mudar essa situação. Até hoje as nossas religiões ainda são vistas como ‘negativas’ ou ‘demoníacas’, da mesma forma que acontecia quando elas surgiram”, explica a estudante Victoria Régia, praticante de candomblé. “É muito bizarro sentir que os cristãos tentam enquadrar a minha religião no padrão deles, como se fosse uma imposição necessária. Não tem nada a ver uma coisa com a outra, são duas formas de trabalhar a fé completamente diferentes”, reclama.

Para ela, o crescimento desses crimes de intolerância no último ano pode ser diretamente relacionado a figuras como o bispo Marcelo Crivella (PRB) na Prefeitura da capital fluminense. “A imagem dele está completamente vinculada ao protestantismo, que tem um enorme histórico de perseguição às religiões de matriz africana. Esse não é um governo onde eu e meus irmãos de fé conseguimos nos sentir seguros. Na verdade, eu diria que a situação até piorou com ele”, rebate a estudante. A apreensão não é para menos. Ainda em outubro, a Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro realizou um verdadeiro culto evangélico em seu interior, com direito a músicas gospel e mãos dadas entre os políticos, todos liderados pelo vereador e também bispo Inaldo da Silva (PRB), colega de Partido do prefeito.

Pessoas de diversas religiões participaram da caminhada em Copacabana no dia 17 de setembro | Foto: Elisângela Leite

Mas se depender do povo carioca, ainda haverá resistência. Um mês antes do culto no plenário, mais de duas mil pessoas já haviam lotado a Avenida Atlântica, em Copacabana, em uma marcha a favor da livre expressão da fé. O evento, batizado de “Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa”, foi promovido pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) e, mais do que crenças africanas, reuniu também judeus, islâmicos, budistas, cristãos e até wiccas. O objetivo foi mostrar que, independente do credo, é possível conviver de maneira pacífica em sociedade. “O momento foi lindo, porque mostrou que ainda temos alguns aliados. Pessoas que estão dentro dessas outras religiões e que não nos olham de forma pejorativa”- declara Victoria, que foi à marcha acompanhada do amigo Victor Soriano.

Representante da CCIR, o Babalowô Ivanir dos Santos, um dos organizadores da Caminhada, explica que o momento não é de baixar a guarda e, sim, de continuar lutando: “devemos exigir que esses casos de intolerância religiosa e racismo sejam apurados com a máxima urgência possível.”

A preocupação é reverberada pela Secretaria Estadual de Direitos Humanos, que insiste em combater os casos de todas as formas, auxiliando sempre que possível quem sofre com esses crimes. “Nós oferecemos assistência jurídica, psicológica e social para as vítimas. E, além do Disque Combate ao Preconceito, a Secretaria está em constante contato com associações religiosas e com os órgãos de Segurança para mapear esse tipo de ocorrência e atuar para que esses agressores sejam punidos”, alega a assessoria.

O meio mais significativo nesse combate, Monalyza reafirma, é a denúncia. Apenas por meio dela é que os dados reais poderão ser coletados e, assim, a urgência desse quadro ser levada a um patamar nacional. “Muitas pessoas deixam de denunciar, por não acreditarem em uma punição ou por medo de represálias. Isso dificulta que consigamos ter um retrato real da intolerância no estado. Por isso, reforçamos sempre a importância da denúncia como delito de preconceito religioso”, explica.

Questionada pelo Maré de Notícias, a Prefeitura do Rio disse que “a Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos, através da Subsecretaria de Direitos Humanos e das Coordenadorias de Respeito à Diversidade Religiosa (CRDR) e de Igualdade Racial, tem se manifestado de forma contumaz contra toda forma de preconceito religioso e racial, repudiando atos de violência e agressões.”

ONDE DENUNCIAR

Disque Combate ao Preconceito (2334 – 9551), que também atende vítimas de LGBTfobia

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