Operações e remoções impactam a vida dos moradores e geram múltiplas de violações

Data:

Maria Tereza Cruz

Edição #164 – Jornal Impresso do Maré de Notícias

“Tive que sair da minha casa, porque a crise do meu filho piora na poeira e, para não voltar com ele para uma UTI, precisei pedir ajuda de amigos”. Esse é um trecho de um depoimento postado por uma moradora da Maré nas redes sociais. 

Na imagem, ela aparece com o filho, um bebê de um mês de vida, no colo, e narra que a sua família é uma das que está sendo removida dos prédios construídos no Parque União. A poeira de edificações é composta por partículas finas de materiais como cimento, areia, gesso, e outros componentes e a inalação dessas partículas pode causar problemas respiratórios, irritação nos olhos e na pele, e, em casos mais graves, doenças como a silicose, quadro crônico que pode comprometer o funcionamento dos pulmões.

O que aconteceu

Agentes da Prefeitura do Rio de Janeiro foram até as construções no dia 3 de julho e colocaram cartazes dando o prazo de três dias para os moradores simplesmente saírem das casas. Nem a Secretaria de Assistência Social e nem a de Habitação visitaram o local na data para cadastro de famílias e demais orientações sobre o processo. 

O papel colado dava ainda a informação pouco detalhada de que, caso a determinação não fosse cumprida, os prédios poderiam ser demolidos a qualquer momento. O processo de demolição começou no dia 19 de agosto e seguiu até o início deste mês, com previsão de retorno para uma “segunda fase”, de acordo com a Secretaria de Ordem Pública (SEOP). 

Somente no dia 24 de agosto, no 6º dia de operação policial consecutiva para a realização das demolições, é que agentes da Secretaria de Assistência Social apareceram no local e, segundo nota da pasta, cadastrou 40 famílias. 

Múltiplas violações

Nesse período todo, a moradora que fez o desabafo nas redes sociais, o filho com problemas respiratórios e todos os outros moradores ficaram submetidos a poeira. Mas também vivenciaram outras violações: ameaças, xingamentos e até a invasão de seus domicílio e furto de pertences por parte do Estado que, na verdade, deveria auxiliar e atender as demandas dessas pessoas.

Ana Beatriz, de 20 anos, vive no local há três anos e contou que não recebeu diretamente nenhum aviso prévio da demolição. “Eu penso em continuar na minha casa, não vou sair, até porque eu não tenho para onde ir e meus filhos são pequenos ainda. Não tá tendo aula, eu tenho que levar minha filha no posto e não tá tendo [atendimento]”.

A Secretaria Municipal de Ordem Pública (SEOP), em conjunto com a Polícia Civil e com batalhões especiais da Polícia Militar, coordena as demolições e a retirada das famílias.  Mas no site da prefeitura do Rio, consta apenas a seguinte atribuição à SEOP: “formular e implementar políticas públicas que garantam a manutenção da ordem urbana e a integração da Prefeitura com todas as forças de segurança pública”. 

Em um trecho da nota divulgada no dia 21 de agosto, a Redes da Maré toca neste ponto. “O que estamos testemunhando envolve violações mais amplas dos direitos fundamentais dos moradores. A questão das remoções é histórica e está profundamente ligada ao problema do acesso à moradia digna nas favelas e periferias urbanas. A falta de políticas públicas adequadas e a negligência estatal com os espaços e equipamentos resultam em estratégias improvisadas para ocupar o espaço urbano sem a devida regulamentação e fiscalização. O Estado, ao abdicar de sua responsabilidade na gestão do espaço público e na regulação dos direitos urbanos e habitacionais, contribui para a perpetuação dessas práticas.”

O que diz a lei

Em 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou uma arguição, como resultado da Campanha Despejo Zero, que, na ocasião, representava uma grave violação aos direitos humanos, diante da pandemia. A partir dessa articulação, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicou a resolução 510 e uma cartilha de orientações para quando o despejo for a última saída. 

Nesse texto, há o passo a passo para a realização de remoções, começando com uma reunião para elaboração do cronograma de desocupação: “Essa reunião deve contar com a presença dos ocupantes, seus advogados, Ministério Público, Defensoria Pública, órgãos de assistẽncia social, movimentos sociais e/ou associações de moradores e o Oficial de Justiça responsável pelo cumprimento da ordem, além de outros possíveis interessados”. 

Em seguida, o município deve fazer um cadastramento das famílias que ocupam a área a ser despejada, bem como fazer  a realocação e inserção delas em programas habitacionais, com a presença da assistência social e a garantia de um prazo razoável para desocupação. 

Nada disso aconteceu no processo de retirada dos moradores do Parque União, o que tornou a rotina dos moradores, inclusive de outras favelas do conjunto, incerta, tensa e insegura.

Todos afetados

Em 2024, a Maré já viveu 37 operações policiais. Em agosto foram 10 dias consecutivos de operações. Crianças e adolescentes já perderam, desde janeiro, um mês inteiro de aula. 

Os impactos das escolas fechadas vão muito além do ensino propriamente dito, como destaca a nota da Redes da Maré. “O processo de ensino e aprendizagem fica completamente comprometido quando existe sempre a possibilidade de não se ter aula no dia seguinte. Essa incerteza, permeada por estresse e ansiedade, afeta toda a comunidade escolar, causando adoecimento físico, mental e emocional dos estudantes e suas famílias, mas também de professores, gestores e outros profissionais de educação.”

Além das escolas, a rede de saúde também tem sido severamente afetada, só nos 10 dias consecutivos de operações policiais, mais de 2 mil atendimentos deixaram de ser realizados. 

Uma moradora nos relatou que faz tratamento psiquiátrico e necessita de remédios controlados de uso contínuo, mas não conseguia ter acesso aos medicamentos. Outro morador nos contou que sofre de uma doença crônica e teve o quadro de saúde agravado no domingo, que antecedeu o início das operações, e ficou 4 dias esperando para ser atendido. 

A circulação constante de policiais e veículos blindados também alteram sensivelmente a rotina da comunidade, inclusive, para além dos limites do Parque União. Ao menos três direitos constitucionais estão sendo sistematicamente violados: o de acesso à educação (artigo 205º), à saúde (artigo 6º) e o direito de ir e vir (artigo 5º). 

O pior é que este cenário não tem prazo para acabar. Em insistentes questionamentos feitos pelo Maré de Notícias aos órgãos responsáveis sobre o cronograma e previsão de término das remoções, as respostas foram evasivas. Em muitos casos, se limitaram a dizer que “as operações vão continuar pelos próximos dias”. 

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