Pelo direito de sonhar

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Crianças da Maré encaram como sonho aquilo que deveriam ter por direito.

Foto: Affonso Dalua

Andrezza Paulo e Teresa Santos

Maré de Notícias #153 – outubro de 2023

De acordo com o Censo Maré (2019), 24,5% dos moradores têm até 14 anos e destes, 11% estão na primeira infância. São mais de 34 mil crianças no território.

Mas a que infância nos referimos, sabendo que o contexto territorial impacta diretamente na vida de meninos e meninas? Quais são os sonhos dos pequenos moradores da Maré?

No mês da criança, conversamos com um grupo da localidade do Tijolinho e da Nova Maré e, na busca por essas respostas, percebemos que os sonhos são, na verdade, pedidos de garantia de direitos: ao lazer, à moradia, à saúde, a uma sala de aula refrigerada, à educação de qualidade, à segurança alimentar e ao saneamento básico.

Os desejos das crianças mareenses mostram que elas estão, de fato, atentas ao que lhes é devido pelo Estado, pensando em formas de melhorar a qualidade de vida não somente delas como da sociedade.

Saneamento e lazer

“Queria ser modelo, aparecer na televisão. Se eu pudesse, limpava as ruas e colocava mais natureza na favela.” Jamilly, 8 anos

O lixo nas ruas não é um incômodo apenas para a menina. Segundo o Censo Maré, 26,4% dos moradores não têm coleta de lixo na porta de casa e precisam levá-lo a pontos de recolhimento específicos. Mais de 900 casas não usam o serviço de coleta: isso significa que o lixo dessas residências é lançado em terrenos baldios, vias públicas, valões ou canais do território.

Segundo a bióloga Adriana Sotero, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), a falta de saneamento é muito marcante em territórios de favela. Isso se evidencia, por exemplo, no esgoto a céu aberto, na falta de abastecimento regular de água potável e, ainda, no recolhimento precário do lixo. 

Adriana aponta que caçambas muito cheias, transbordando lixo, são um dos indicativos de que a coleta é insuficiente. “Muitas vezes, o lixo ele não é recolhido com a velocidade com que aquela população precisa.”

“Quero ser jogador de futebol, eu amo muito jogar futebol. Queria mudar as calçadas e as ruas pra não passar carro e moto quando eu jogo bola. Não quero dar prejuízo. Queria que tivesse mais quadras de futebol.” Rafael, 9 anos

A falta de saneamento impacta a saúde das pessoas de diferentes formas. Segundo a pesquisadora, brincar, por exemplo, em um solo onde passa esgoto, pode favorecer o surgimento das chamadas zoonoses, isto é, doenças que são transmitidas entre animais e pessoas, e também de verminoses.

A leptospirose é uma doença infecciosa causada pela exposição à urina de animais, principalmente ratos, infectados por uma bactéria chamada leptospira.

 Segundo dados do Observatório Epidemiológico da Cidade do Rio de Janeiro (EpiRio), em 2022 o município do Rio de Janeiro registrou 72 casos de leptospirose. A Área de Planejamento 3.1, na qual a Maré está inserida, foi uma das que mais registrou casos em todo o município: 13 no total. 

Foto: Kamila Camillo | Espaços de lazer, práticas de esportes e brincadeiras são demandas das crianças.

Assistência médica

“Quero muitas coisas, mas quero muito ser médica para cuidar das pessoas que estão passando mal. Um monte de gente por aqui passa mal, só tinha médico na clínica da família, mas não adianta nada. Eu também pintaria os muros das casas e melhoraria a rua.” Eloá, 10 anos 

Se, por um lado, o comprometimento da saúde ambiental favorece o surgimento de agravos, a falta de assistência torna a situação ainda mais preocupante. A carência de profissionais de saúde apontada pela Eloá é uma realidade.

Segundo Adriana Sotero, “falta, na verdade, assistência médica” e é a violência uma das causas que dificulta a expansão dos serviços de saúde nas favelas. Devido às frequentes operações e conflitos armados, muitos profissionais preferem buscar outras regiões para trabalhar.

Atualmente, a Maré conta com 11 unidades de saúde pública, sendo uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), quatro Clínicas da Família (CF), três Centros Municipais de Saúde (CMS), um Centro de Atenção Psicossocial II (CAPS II), um Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil II (CAPSi II) e um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas III (CAPSad III). 

Esses equipamentos são a principal forma de acesso a cuidados em saúde dos cerca de 140 mil mareenses. Segundo o Censo Maré, 87,7% dos moradores não têm cobertura privada e dependem do Sistema Único de Saúde (SUS).

Cuidado e educação

“Meu sonho é ser pai. Queria trabalhar, ganhar dinheiro pra comprar coisas pra comer.” João Pedro, 5 anos

Os desafios são muitos, mas, para a pesquisadora da Fiocruz, é possível modificar essa realidade. A mudança passa não só pela formulação de políticas públicas, como também pela sociedade. 

Na Maré, encontram-se grupos, coletivos e organizações que lutam pela melhoria da qualidade de vida nas 16 favelas. “São grupos que tentam defender e debater a importância do saneamento nessas áreas, e lutam pela preservação das áreas verdes, entre outras pautas.”

“Quero ser jogador de Free Fire, um gamer. Quero trabalhar, comprar uma casa pra minha mãe e mudar as salas de aula da escola. Tem muito ventilador enferrujado e às vezes acaba o material.” Miguel, 10 anos

Uma conquista importante que repercutiu através da Redes da Maré foi a elaboração das cartas pelas crianças, relatando a violência das operações policiais no território. 

Em 2019, mais de 1.500 cartas foram enviadas para o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) junto com uma petição para que a Ação Civil Pública da Maré fosse restabelecida. Diante do apelo, a ação judicial foi revalidada, assim como os parâmetros mínimos para a ocorrência das operações policiais no território. 

O futuro do futuro

A Redes da Maré lançou no dia 27 de setembro a pesquisa Primeira infância nas favelas da Maré — Acesso direitos práticas de cuidado. O diagnóstico inédito é resultado de uma pesquisa apoiada pela organização Porticus e teve como objetivo principal produzir conhecimento sobre as condições de vida e o perfil das crianças de 0 a 6 anos residentes nas 16 favelas da Maré. 

O estudo traz informações estratégicas para a construção de políticas públicas e ações efetivas em prol dos direitos das crianças, e que impactam diretamente no desenvolvimento do território.

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